A arte que liberta em César deve Morrer
08/08/2013 10:29Davenir Viganon
Os irmãos Paolo e Vittório Taviani trouxeram uma proposta simples, registrar detentos do presídio de segurança máxima de Rebibbia, nos arredores de Roma, interpretando a peça “Júlio César” de Shakespere. Mas não se trata de um documentário sobre um trabalho artistico-social realizado pelo diretor de teatro Fábio Cavalli, mas de uma refinada obra de arte que extrapola os parcos limites da terra da bota. Na direção dos Taviani, “César deve morrer” segue uma inspiração do realismo italiano de Roberto Rosselini onde se faz um cinema politizado que mescla realidade e ficção, usando atores não-profissionais em cenários reais. As situações e reflexões que a peça provocam nos detentos mesclam-se com suas realidades abalando-os profundamente.
O filme parte de um cenário real, a prisão de Rebibbia, onde existe o projeto teatral onde Fábio Cavani trabalha diretamente com os detentos.
“ ‘A Itália (...) é um dos raros senão o único país do mundo em que você tem de ir à cadeia para ver o melhor teatro’. Os irmãos Taviani foram ver um de seus espetáculos e ficaram tão impressionados que quiseram fazer um filme. O teatro mudou e continua mudando a vida desses homens - e de suas famílias. Antes, eram criminosos, agora são artistas.[1]
O projeto de teatro com os detentos não é novo no presídio, desde 2002 o trabalho vem sendo realizado e desde 2006 recebe espectadores para as peças. O filme inicia em clima de documentário, mostrando inicialmente uma cena da peça interpretada pelos presos e os principais atores retomando a suas celas. Já na fase de seleção é possível ver a dedicação e vontade dos apenados em participar da peça.
durante as audições, nós dizíamos que, por fins de privacidade, se eles quisessem, poderiam nos dar nomes falsos. Ficamos muito impressionados quando todos insistiram em nos dizer seus nomes verdadeiros, os nomes de seus pais e as cidades onde nasceram. Depois de um tempo, chegamos à conclusão de que o filme poderia ser uma forma de lembrar a todas as pessoas que moram do lado de fora que eles estavam vivendo suas vidas no silêncio da prisão.
Seguido da seleção dos atores e a entrega dos personagens, o filme, a partir daí, durante quase toda a sua extensão, ganha em complexibilidade e profundidade ao mostrar intensos ensaios dos apenados que se dedicam visceralmente a contar a história e a penetrar em seus personagens, obviamente dentro de suas limitações.
Ensaio teatral e realidade se misturam na obra dos Taviani
A história da peça se entrelaça com tanta profundidade á vida dos apenados que chegam a gerar momentos de discussão entre eles. O clima de conspiração que cerca Júlio César, onde o perigo eminente de ser apunhalado pelas costas é bem conhecido do cotidiano da cadeia.
“No dia em que filmamos a sequencia do assassinato de César, pedimos para nossos atores, armados com adagas, encontrarem o mesmo instinto assassino dentro deles. Um segundo depois, percebemos o que tínhamos acabado de dizer e queríamos poder retirar nossas palavras. Mas isso não foi necessário, porque eles foram os primeiros a reconhecer a necessidade de encarar a realidade.”[2]
Todo o desenvolvimento do filme consiste numa gravação dos ensaios que vão ao primeiro plano contando a história da peça, ao mesmo tempo em que mostra a rotina dos presos em suas mudanças e permanências com o preparativo da peça. Às vezes em que os presos saem do texto, desde uma discussão pessoal mesclada com as falas dos personagens na cena em que Décio mente para César até um lamento de “Brutus” que relembra de sua vida de crime antes de ser preso enquanto ensaiava, encorpam-se na história, mesmo tratando-se de ensaios.
O filme ganha ares de teatro filmado com uma dualidade entre a liberdade da arte no palco e o cotidiano no cárcere que é gritante nas cenas exibidas em cores durante a peça e os momentos dos ensaios gravados na prisão em preto e branco.
A cor é realista, o preto e branco é ilusório. Pode parecer uma afirmação autoritária, mas, pelo menos nesse filme, isso é verdade. Quando chegamos à prisão, sentimos que havia o risco de cairmos no naturalismo da TV e fugimos disso usando o preto e branco, que nos deu mais liberdade para criar e filmar num cenário absurdo como a prisão. Usando o preto e branco, nos sentimos mais livres para filmar numa cela onde Brutus repete com sofrimento e paixão seu monólogo: “César deve morrer”. Nós optamos por imagens fortes e violentas em preto e branco que, no final, ganham cores mágicas no palco, enaltecendo a alegria furiosa dos detentos impressionados com seu sucesso. [3]
Os ângulos usados para gravar os ensaios estão posicionados em planos que aproveitam o cenário do presídio ao máximo. As externas do presídio focam a prisão num clima palaciano e conspiratório enquanto Brutus e os conspiradores planejam a morte de Júlio César e os corredores estreitos das ruelas da Roma Antiga são facilmente aproveitados com os corredores entre os setores do presídio enquanto César é perseguido e vigiado pelos seus opositores. Um momento em especial é a defesa de Brutus e de Marco Antônio depois da morte de César diante da população, gravada no pátio do presídio onde a população romana é interpretada por outros detentos encarcerados das janelas de suas celas.
A conspiração está presente nas estreitas ruas de Roma... e nos corredores do presidio
A luta pela liberdade empreendida pelos personagens é o elemento de maior envolvimento com os apenados. Participar da peça torna-se uma redenção, um encontro com si mesmo num paradoxo na vida destes detentos que encontram a liberdade na arte enquanto seus personagens sofrem e lutam por ela. Tudo isso ocorre, mesmo que de maneira desencontrada e experimental, com uma energia arrebatadora. A frase dita por Cosimo Rega, um condenado a prisão perpétua que interpretou Cássio sintetiza este sentimento: "Agora que conheço a arte, esta cela tornou-se uma prisão". A afirmação parece uma frase simples e óbvia para quem está preso, mas libertar-se através da arte não é uma possibilidade apenas para os presos de rebibbia, mas também a todos os marginalizados da sociedade e nesse ponto que a obra extrapola os limites da Itália.
O que pode restringir o alcance do filme e deixá-lo muito “italiano” está justamente nas especificidades feitas na adaptação do roteiro referente principalmente na adaptação da linguagem de Shakespere para os dialetos italianos. Este elemento na adaptação é muito válido para manter o caráter popular que das peças Shakespere que sempre tiveram apelo popular. Lembremos que Shakespere é universal e a politização dos Taviani nunca foi nacionalista.
A arte não evidencia apenas a capacidade de reintegração dos apenados a sociedade, mas mostra que a mesma arte que liberta pode fazer notar outras celas que não são exclusivas dos detentos de rebibbia, as quais só quem é marginalizado pela sociedade conhece.
Defesa de brutus na destacada interpretação de Salvatore “Sasà” Striano[4] hoje livre e trabalhando profissionalmente na sétima arte (Il clan dei camorristi).
Notas
[1] https://www.estadao.com.br/noticias/impresso,entrevista*-arte-que-transforma-,1003835,0.htm
[2] Entrevista concedida na ocasião do Festival de Berlin de 2012 onde o filme recebeu o prêmio principal.
https://www.blogdoims.com.br/ims/paolo-e-vittorio-taviani-shakespeare-no-carcere/
[3] Idem.
[4] https://it.wikipedia.org/wiki/Salvatore_Striano
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