A formação de professores e a educação estética (parte I)
15/10/2012 22:52Walter Lippold
“A doutrina materialista sobre a alteração das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são alteradas pelos seres humanos e que o próprio educador deve ser educado. Ela deve, por isso, separar a sociedade em duas partes - uma das quais é colocada acima da sociedade. A coincidência da modificação das circunstâncias com a atividade humana ou alteração de si próprio só pode ser apreendida e compreendida racionalmente como praxis revolucionária.”
3ª Tese sobre Feuerbach de Karl Marx. Grifo nosso.
Para compreender a importância da educação estética na formação de professores – dentro de uma perspectiva dialética - cabe fazermos, inicialmente, uma problematização, um questionamento importante: como se correlaciona a estética com a formação de educadores e que “funções” desempenha a arte na ordem sócio-metabólica do capital? Partimos dessa pergunta para, inicialmente, superarmos a concepção metafísica que isola a estética como campo autônomo, não adentrando em suas contradições e mediações. Por outro lado, devemos combater a perspectiva que considera a arte um mero reflexo mecânico da base material da sociedade[1].
Nosso intuito é suscitar o debate sobre este importante tema, procurando em Marx, Lukács, Kosik, Mészáros e Chauí, subsídios teóricos que possibilitem uma crítica da atual formação estética dos professores, dentro da concepção da atividade como mediação fundamental do ser humano, que objetiva o subjetivo, refletindo e projetando subjetivamente, a objetividade. Mas, esta mediação fundamental e insuperável da condição humana, por sua vez, dentro do modo de produção capitalista, é mediada por mediações de segunda ordem, pois a atividade dentro do status quo atual é uma atividade alienada, estranhada, uma objetivação que não humaniza, pelo contrário, destrói cotidianamente o trabalhador.
O trabalho/atividade, neste sentido, deve ser considerado – contraditoriamente - tanto como Lebensäusserung, como manifestação/objetivação de vida, e como Lebensentäusserung, como alienação/aniquilação da vida. Sendo a arte uma expressão particular da objetivação humana, cabe ao processo de formação de professores, criar as condições materiais e subjetivas para o surgimento de um educador capacitado dentro de uma compreensão estética da realidade, que vá além da mera contemplação, da passividade da sociedade do espetáculo.
Partimos do conceito de fetichismo da mercadoria[2] e conseqüentemente da teoria da alienação expressa nos Manuscritos de 1844, pois deles podemos desenvolver argumentos para uma crítica marxista da obra de arte no capitalismo do início do século XXI e do direito do gozo estético, da educação musical, plástica, corporal, fílmica, literária, pois o próprio órgão do sentido humano tem que ser humanizado para desfrutar da arte.
Podemos facilmente exemplificar este processo se levamos em conta o jazz. Se uma pessoa não conhece jazz, nunca ouviu, não sabe de sua história, nunca poderá diferenciar um estilo de jazz do outro, não saberá a diferença entre o improviso frenético do bebop, do dançante – e muitas vezes comercial – swing jazz. O sentido da audição tem que ser educado e incentivado a esse processo, assim como todos os sentidos humanos.
“[...]O olho se tornou humano, da mesma forma como o seu objeto se tornou um objeto social, humano, [...]Além destes órgãos imediatos formam-se, por isso, órgãos sociais, na forma da sociedade, logo, por exemplo, a atividade em imediata sociedade com outros etc., tornou-se um órgão da minha externação de vida e um modo da apropriação da vida humana. Compreende-se que o olho humano frui de forma diversa da que o olho rude, não humano [frui]; o ouvido humano diferentemente do ouvido rude etc.” [3]
Marx[4] continua com sua exposição:
[...]assim como a música desperta primeiramente o sentido musical do homem, assim como para o ouvido não musical [ou seja, não educado para a musicalidade] a mais bela música não tem nenhum sentido, é nenhum objeto.[...]A formação dos cinco sentidos é um trabalho de toda a história do mundo até aqui. O sentido constrangido à carência prática rude também tem apenas um sentido tacanho. Para o homem faminto não existe a forma humana da comida, mas somente a sua existência abstrata como alimento[...]O homem carente, cheio de preocupações, não tem nenhum sentido para o mais belo espetáculo;[...]
Como disse Mészáros[5]: “Os sentidos verdadeiramente humanos são caracterizados pela mais alta complexidade. A posse de olhos não é suficiente para captar a beleza visual. Para isso é preciso possuir o sentido da beleza.” Esse sentido de beleza, é histórico, depende do modo de produção, da classe a que pertence o artista e o público. Kosik[6] reforça esta concepção:
[...]Da minha audição e da minha vista participam, portanto, de algum modo, todo o meu saber e minha cultura, todas as minhas experiências – sejam vivas, sejam ocultas na memória e se manifestando em determinadas situações -, os meus pensamentos e as minhas reflexões, apesar disto não se explicitar nos atos concretos da percepção e da experiência sob um aspecto predicativo explícito.
Ao se tornar mercadoria e refém da fragmentação proporcionada pela divisão do trabalho, a arte, como fruto da objetivação humana, torna-se alienada e alienante. Defendemos que nem toda objetivação foi – historicamente – estranhamento, auto-alienação, pois nossa crítica se refere ao trabalho alienado, a objetivação que torna o produto da atividade, a própria atividade hostis ao produtor que se torna estranho a natureza, aos outros humanos e a si mesmo. O trabalho, esta mediação de primeira ordem insuperável da condição humana, ao ser acionado dentro do metabolismo social dominado pelo capital, efetiva-se através de mediações de segunda ordem, a divisão do trabalho, a propriedade privada e o intercâmbio[7].
A educação artística para o gozo estético não pode deixar de levar estes elementos em conta, pois em tempos onde reinam o individualismo, o consumismo, a mesquinhez da sociedade atomizada dominada pelo capital, “[...]a significação geral do gozo humano é substituída pelo imediatismo bruto da auto-satisfação privada”[8].
Mas devemos nos ater também na questão da divisão do trabalho, lembrando da célebre afirmação de Gramsci sobre a impossibilidade da separação entre o homo faber e o homo sapiens, ou seja que todas mulheres e homens são filósofos, artistas e intelectuais, mas somente alguns tem esta função dentro da divisão do trabalho capitalista. Desse ensinamento podemos concluir que as classes populares, apesar de sua miséria material, também são criadoras de arte, e mesmo sob a mais ferrenha repressão, os trabalhadores urbanos, os camponeses, os desempregados, criaram poesia, música, literatura: os repentistas, os sambistas nascidos no morro carioca, os contadores de causos espantando o frio em um galpão da pampa. A educação deve trabalhar no sentido de combater o preconceito às manifestações artísticas populares e no sentido de desenvolver uma autonomia crítica no educando, para que ele possa discernir entre o artístico e mero produto-mercadoria colorido e sedutor nas gigantescas prateleiras do capitalismo.
Mas uma concepção de causalidade mecânica não permite uma compreensão dialética da obra de arte em nossa sociedade: o filme hollywoodiano, o quadro de Picasso, as latas Campbell de Warhol, o cd de axé music, todos possuem valor de troca, todos são mercadorias. Mas isso não quer dizer que Picasso tinha a mesma intenção quando pintou o doloroso Guernica, do que a do diretor publicitário de uma propaganda de esponjas de aço. A intenção de Picasso era expressar seu terror quanto às bombas da Luftwaffe e não apenas ganhar dinheiro com isso, a atividade do publicitário está diretamente ligada ao processo de produção, ele tem que seduzir o consumidor, o “público-alvo”, para atraí-lo a um determinado produto, a um determinado conceito que se torne análogo àquele produto: “Camionete Deluxe 4x4: você chegou lá, você merece!”. O produto é associado ao “vencer na vida” e isso é internalizado através das campanhas de propaganda; o Sachenwelt – mundo das coisas – é sobrevalorizado em detrimento do Menschenwelt - mundo humano – e isso demonstra que o ideal máximo de arte do capitalismo é a publicidade.
Guernica de Picasso
O educador, para ser educado para o gozo estético, deve compreender a importância da criação artística para o ser humano, pois ela é um dos meios mais antigos de expressar a subjetividade social do indivíduo, o artista vive no mundo, numa determinada sociedade, ele inspira essa sociedade, e expira sua obra individual-coletiva; coletiva no sentido que ele é um catalisador de idéias da sociedade que vive; individual porque tem o toque de sua história de vida, de suas experiências singulares.
A arte de hoje muitas vezes se configura em um mingau pausteurizado e padronizado no seu gosto asséptico, pois apesar da diversidade consumística dos estilos, muitas obras padecem de serem simulacros artísticos, de serem produtos feitos apenas com o intuito de vender. Assim, montam-se grupos musicais de adolescentes que se desmancham em meses, filmes que trazem consigo uma avalanche sufocante de “adereços” vendáveis, brinquedos, roupas, games, etc.
Notas
[1] “A teoria materialista do conhecimento, como reprodução espiritual da realidade, capta o caráter ambíguo da consciência, que escapa tanto ao positivismo como ao idealismo. A consciência humana é ‘reflexo’ e ao mesmo tempo ‘projeção’; registra e constrói, toma nota e planeja, reflete e antecipa; é ao mesmo tempo receptiva e ativa.[...]” (KOSIK, Karel. Dialética do Concreto. 7ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p.32-33)
[2] “A mercadoria é misteriosa simplesmente por encobrir as características sociais do próprio trabalho dos homens, apresentando-as como características materiais e propriedades sociais inerentes aos produtos do trabalho; por ocultar, portanto, a relação social existente, à margem deles, entre os produtos do seu próprio trabalho. Através desta dissimulação, os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas sociais, com propriedades perceptíveis e imperceptíveis aos sentidos. A impressão luminosa de uma coisa sobre o nervo ótico não se apresenta como sensação subjetiva desse nervo, mas como forma sensível de uma coisa existente fora do órgão da visão. Mas, aí, a luz se projeta realmente de uma coisa, o objeto externo, para outra, o olho. Há uma relação física entre coisas físicas. Mas, a forma mercadoria e a relação de valor entre os produtos do trabalho, a qual caracteriza essa forma, nada tem a ver com a natureza física desses produtos nem com as relações materiais dela decorrentes. Uma relação social definida, estabelecida entre os homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. Para encontrar uma símile, temos de recorrer à região nebulosa da crença. Aí, os produtos do cérebro humano parecem dotados de vida própria, figuras autônomas que mantém relações entre si e com os seres humanos. É o que ocorre com os produtos da mão humana, no mundo das mercadorias. Chamo a isto de fetichismo, que está sempre grudado aos produtos do trabalho, quando são gerados como mercadorias. É inseparável da produção de mercadorias.” (MARX, Karl. O Capital. Crítica da Economia Política. Livro I, Vol.1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968 , p. 81).
[3] MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. p.109
[4] MARX, Ibidem, p.110.
[5] MESZÁROS, István. A Teoria da Alienação em Marx. São Paulo: Boitempo, 2006. p.183.
[6] KOSIK, ibidem, p.30.
[7] MÉSZÁROS, ibidem, p.78.
[8] MÉSZÁROS, ibidem, p.184.
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