A resposta negra: o que há entre Django Livre e o “rolezinho”?
14/01/2014 08:58Fabiana Mathias
Pensei muito no que escrever como título para uma análise crítica do filme Django Livre, de Quentin Tarantino, e foi muito difícil expressar tudo que senti, ao assistir o filme, nas poucas palavras de um título. Django fala sério, mas também é uma brincadeira. Muita gente expos seus preconceitos por se sentir incomodado com Django. Na internet muitos gostaram, outros esperavam mais do filme, assim como houve aqueles que aproveitaram para expressar sua opinião não apenas acerca da obra, mas sobre os negros também. No início do ano escrevi uma crítica sobre o filme, hoje, um elemento dele me parece muito útil para analisar o momento da relação entre os negros ocupando seus espaços na sociedade e aqueles que se sentem incomodados com isso.
Aviso! Se você não viu o filme, não leia essa análise, pois está cheia de spoilers. Se já viu, seria bom dialogar sobre a relação entre Django e os fenômenos que estamos vivendo nos últimos tempos no Brasil.
Django não é o melhor filme de Tarantino, mas acho que ele mais acerta do que erra. Posso dizer que ele quase me enganou nos primeiros minutos que sai do cinema, com um sorriso de orelha a orelha ao ver tantos porcos racistas morrendo, mas em certos momentos ele deixa a dúvida se não poderia ter sido uma experiência melhor. Talvez eu tenha esperado demais e no fundo quisesse uma experiência como foi em Bastados Inglórios. Por ter aspectos políticos tão bons, eu gostaria de ter visto uma trama mais elaborada, no entanto, ao mesmo tempo a simplicidade que move as ações dos personagens se torna um grande atrativo, pois coloca aqueles que são expostos a opressão como pessoas, com todas as suas necessidades e complexidade de sentimentos.
É difícil fazer uma crítica a Tarantino, pois ele popularizou um gênero de filme que é uma grande brincadeira visual, com diálogos quentes que grudam na orelha e por vezes, nos fazem sorrir de cumplicidade. Ele é agradável e divertido, faz enquadramentos estranhos, utiliza fórmulas antigas e novas, brinca de vingador da história dos oprimidos, investe nos atores sem preconceitos hollywoodianos e por isso lhes dá mais que papeis, dá presentes. O ator, com tanta imersão, se torna o seu personagem, ao ponto que, muitas vezes, percebemos que o elenco tem nomes conhecidos, quando olhamos os créditos. O cara é definitivamente bom.
Posso dizer que Django peca pela simplicidade da história, talvez o medo de errar na dose crítica nos EUA, um país tão claramente racista, tenha sido um dos porquês de Tarantino não ter subvertido a história como fez em seu antecessor. Como explicar aos tantos velhinhos Republicanos da Academia que tudo aquilo era mera brincadeira com a história? Em Bastardos há uma personificação da guerra, do racismo, dos genocidas, em Hitler e em seus oficiais, principalmente, em Hans Landa. Como personificar o mal ocorrido na história da escravidão? Quem seriam aqueles que se beneficiaram da exploração e da dor dos escravos negros? Quem são seus herdeiros? Perguntas capciosas a parte, isso, e a vontade de não se repetir, também deve ter pesado nas escolhas. Entretanto, existem elementos similares entre uma obra e outra, pois do mesmo modo sádico que ele nos presenteia com a morte e o desespero dos nazistas no cinema tomado pelo fogo, em Django presenciamos uma cena bastante forte em que a expressão de raiva de Jamie Fox, a precisão dos golpes, a câmera lenta enquanto Django chicoteia o homem que torturara a ele e a sua amada, nos tornam mais que espectadores, nos tornam cúmplices da raiva do personagem, uma raiva que dá origem a uma resposta negra.
A resposta negra nos remete a muitos elementos da história passada e presente, seja no cinema ou na vida real, a resposta do negro que não se submete a lógica imposta pelo poder branco opressor sempre mexeu com o imaginário e com o medo de muitas pessoas. A resposta negra está nos jovens que criaram o “rolezinho” (passeio de jovens de periferia, negros e mestiços em grandes grupos, às vezes dançando, às vezes cantando, por centros de comércio, sim apenas isso) que mexeu com o que a classe média tem de mais caro em seu dia a dia, que é a mentira do pertencimento a classe burguesa através do consumo nos shoppings, a farsa da segurança e do apartamento de um mundo “feio, maloqueiro e pobre” que existe fora do ar condicionado. Negros no shopping? Não, não era devido a música, a dança, a exposição da cultura dos jovens. Brincar de proletário indo a baile funk e descer até o chão pode, desde que você possa voltar para o melhor bairro de sua cidade depois de ter experimentado, só de brincadeira, uma noite de periferia no baile. O inverso jamais. E é aí que a “resposta negra” mais incomodou. Como ousaram eles? Como ousam querer espaços nas melhores universidades, dividir espaços nos cursos tidos como de elite, competir no mercado de trabalho, comprar na mesma loja, frequentar o mesmo café, discutir política, vestir boas roupas, andar com os amigos no mesmo shopping, desejar, sonhar, buscar? O alvoroço com que foi recebido Django Livre, não é em função das tantas vezes que a palavra nigger é repetida, mas por que a própria existência do termo é a expressão de todo o ódio racial existente naquele país. O alvoroço foi por ser este um personagem negro em busca de vingança, sem sorrisos contentes, sempre feliz com sua exploração e a exposição cômica como Hollywood adora mostrar. O mesmo alvoroço causado por Sidney Poitier, em 1967, quando seu personagem Virgil Tibbs, um detetive no filme “No Calor da Noite”, é agredido por um branco e revida com outra bofetada. Dificilmente em outra obra veríamos isso antes desse ano e, provavelmente, não teríamos visto se Poitier não tivesse requisitado a mudança no roteiro adaptado em que o detetive apanha sem revidar. Na história dos opressores todo e qualquer traço de reação negra foi apagado, negado ou suprimido de nossos livros e só hoje podemos ver em mais larga escala que as respostas negras foram contínuas, inúmeras e permanentes de ponta a ponta do mundo, em qualquer espaço opressor.
Tarantino, porém, também comete erros, porque não consegue se desvencilhar da velha história do branco que leva o negro a sua redenção, ainda recai sobre ele uma espécie de apego ao “fardo do homem branco”. Ele também não aproveita o que pra mim era o clímax perfeito para acabar a história, a cena de tensão em que o Dr. Schultz reluta em apertar a mão de Calvin Candie, após a negociação por Bronhilda. Ali, se o filme acabasse seria perfeito, com mais algumas mortes e violência, sim, claro, por favor, com tudo que se tem direito em um filme de Tarantino, mas não, ele decide ''arrastar'' por mais alguns minutos que pra mim eram desnecessários e quebram um pouco o ritmo da narrativa. Se ele queria matar o personagem de Waltz, tudo bem, odeio cinema água com açúcar, mas reviravoltas podem ser cansativas demais e colocar de novo Django na posição de vítima pode ter tido dois motivos, um, ele realmente gosta de reviravoltas, o que podemos ver em Bastardos e Kill Bill, a outra possibilidade é que ele mesmo tenha feito a crítica a respeito de Django e sua dependência de Schultz, e desejasse mostrar a habilidade deste se auto organizar como homem liberto, sua capacidade de manipular, sua objetividade, enfim. Na verdade, assim que o Dr. abre as correntes de Django, Tarantino mostra que Django não é um personagem vazio que está ali para ser preenchido por Schultz, não se trata de uma relação mestre e aprendiz. Django é um homem completo, com objetivos, vontades, caráter, e o diretor apenas demarca momentos em que isso tem ficar bem claro, ele sabe atirar, questiona incessantemente e conduz muitas vezes o rumo que estes darão ao resgate de Bronhilda. Pra mim, que amo Tarantino, prefiro pensar que ele buscou estender o filme preocupado com isso.
Os personagens no filme, como sempre, são bastante interessantes. Dr. Schultz, não é mocinho ou bandido, ele apenas quer sobreviver, e ao que me parece o que dá profundidade ao personagem é o encontro que este faz com a realidade de Django, e talvez a sequência entre o recordar da morte de D´Artagnan estraçalhado pelos cães, suas considerações sobre Alexandre Dumas e o pedido de desculpas a Django por não ter resistido em matar Candie, sendo essa a linha tênue entre a negação humana e a construção da consciência e criticidade ao que está ao nosso redor. O Dr. é um homem intrigante, serve a cerveja para ele e para Django, serve água para Bronhilde, em uma época que brancos jamais serviriam negros, gesto que para um amigo foi propositalmente pensado por Tarantino, pois ele queria uma outra racionalidade constituída naquele personagem para além de seu tempo histórico.
Calvin Candie e Stephen são personagens a parte, ambos acreditam na inferioridade negra. O primeiro é o patrão branco, que se apoia em teorias eugênicas para sua segregação, um personagem interpretado com muita precisão por Leonardo DiCaprio. O outro, um empregado negro, interpretado de modo absurdamente fantástico por Samuel L. Jackson. Candie, adora lutas letais entre negros, lutas chamas pelos personagem de mandingo, talvez numa referência ao filme da década de 70, Mandingo – o fruto da vingança, que causou tanta polêmica por tratar do relacionamento pessoas de raças diferentes. Tarantino queria mostrar que sabe de quem está falando, com quem seu filme dialoga e que ele não brincava quando falou que via muito blaxploitation quando criança. O empregado Stephen, se sobressai no filme, principalmente, quando este sai do papel de velho arqueado, senil e maldoso, e neste momento percebemos que ele é um sobrevive entre os brancos e que o fez da melhor maneira que encontrou e que seu caráter permitiu, sendo fiel, vigilante e tão vilão quanto qualquer um dos brancos que vivem na propriedade.
Um personagem a parte é a própria KKK – Ku Klux Klan – que o diretor não se preocupa em levar a sério e dá ao filme uma de suas melhores cenas cômicas. Um dos melhores momentos visuais está na descida a cavalo na colina em que os cavaleiros são iluminados apenas por tochas, cena que remete, acredito propositalmente, ao filme O Nascimento de Uma Nação, de D.H. Griffith, uma das maiores bilheterias do cinema dos EUA na época de seu lançamento, um filme que glorifica o racismo e que propõe a segregação negra como forma de proteção da sociedade expondo os negros, todos atores brancos pintados (black faces), como preguiçosos, gananciosos e violentos. A Klan foi formada por volta de 1865 e se manteve com diversas ações terroristas e homicidas por um longo período da história, mas nunca cresceu muito no país. As autoridades fingiam o desconhecimento de seus atos e muitas vezes compunham secretamente os grupos da organização. Durante os anos 1950, com as primeiras ações afirmativas surgindo no país, ouve uma reação muito forte da KKK, aumentaram os assassinatos e linchamentos em resposta ao respeito a alguns direitos mínimos e básicos da população negra.
Pra finalizar, gostei muito de um momento do filme que pode parecer bobo, mas que acho de uma crítica fantástica, entre o personagem de Big Daddy (Don Johnson, em um personagem propositalmente patético) e uma de suas escravas (quase escrevi empregadas) ao explicar como esta tem que tratar Django. Segundo a ele, este não pode ser tratado como o patrão, nem como um escravo, então com a ajuda das suas escravas busca o nome de um comerciante conhecido e enfim consideram que é assim que ele deve ser tratado. Ou seja, em algum lugar entre a burguesia sulista e os escravos, havia um espacinho para o trabalhador assalariado. Boa, Tarantino!
Gosto de Django. Gosto de como ele irá dialogar com a luta negra e antirracista por um longo tempo. A trilha sonora é boa, gostei da escolha do elenco, muitos dos atores há muito tempo esquecidos de filmes clássicos de faroeste, as paisagens são memoráveis assim como as atuações. Este é um filme para gostar e ver novamente.
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Comentários: A resposta negra: o que há entre Django Livre e o “rolezinho”?
Data: 19/01/2014
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