A revolta das máquinas humanizadas em O Segundo Renascer (Animatrix)
12/06/2013 13:23Davenir Viganon
Depois das decepcionantes sequências de Matrix (1999) - Matrix Reloaded e Matrix Revolutions de 2003 -, dos irmãos Wachovsky, chegou ao público Animatrix. Lançado em simultaneamente com o terceiro filme da série, a coleção de nove curtas mistura elementos de anime com computação gráfica. Em principio parecia mais um caça-níqueis da série mas na verdade acrescentam muito mais para o entendimento do universo Matrix[1] que suas sequência em longa-metragem.
As temáticas, as técnicas e o aprofundamento da série variam entre os filmes. Vamos destacar o que mais revela sobre as origens de onde tudo começou The Second Renascience de Mahiro Maeda (O Segundo Renascer, no Brasil e A Segunda Renascença, em Portugal), que mostra uma espécie de gênese de Matrix.
O curta é dividido em duas partes, sendo a primeira mais carregada de referencias e significados enquanto a segunda serve mais para dar coerência com a trilogia dos longas. Sendo assim, vamos nos atentar mais para a primeira parte que mostra o ínicio dos questionamentos até a declaração de guerra entre homens e máquinas.
A história nos é apresentada como se abríssemos o arquivo 12-1 de conhecimento de Zion[2], a partir daí somos conduzidos por uma imagem de Vishnu, o deus da criação Hindu, que narra à história. Suas intervenções são breves e esparsas, quase religiosas, quando descreve que a sociedade dos seres humanos vivia em “vaidade e corrupção”. Nesta justificativa não houve qualquer menção ao caráter sistêmico do capitalismo na sociedade, mas as imagens mostram uma relação de exploração intensa de homem para com as máquinas, e essas são expostas no filme da mesma maneira que a relação de exploração da burguesia e proletariado.
A revolta das máquinas inicia-se com uma relação de inferiorização entre um ser humano que desenvolveu a Inteligência Artificial e a sua criação. Em seguida essa tecnologia se assemelha de tal forma ao ser humano que se volta contra o mesmo e exige igualdade. Tal situação assemelha-se da burguesia, dona dos meios de produção que retira o mais-valor, e do proletariado que não toma consciência de sua situação, pois está alienado de seu trabalho, reduzido a simples movimentos mecânicos, se torna por tanto desumanizado como a maquina que opera para produzir.
Temos uma relação parecida no filme, mas a relação do ser humano/burguesia com as máquinas/proletariado mostram que as ultimas não são humilhadas por sua natureza, enquanto mecanismos robóticos, mas justamente por que essa Inteligência Artificial avançou a um ponto em que ganharam status social de humanas.
O primeiro robô a rebelar-se havia sido humilhado pelo seu dono e se vinga matando-o. Ele é julgado como um humano, pois é um ser autônomo.[3] Um torno mecânico, por exemplo, pode matar ou decepar um metalúrgico, nem por isso a máquina seria levada a julgamento por isso. A máquina pode não ser biologicamente uma vida, mas se tornou socialmente, o que já foi o suficiente para que se mudasse a relação com ela.
Seguem-se várias cenas que mostram a humanização da máquina através violência imposta pelo ser humano. Existem referências constantes à eventos históricos, por exemplo, quando um tanque que passa por cima de um robô, (massacre da Praça da Paz Celestial) e quando as escavadeiras enterram os restos de robôs (Holocaustro nazista). Em meio a cenas de matanças temos um humano que destrói um robô aos gritos de “morre Robô, morre”, mostrando novamente a máquina sendo humanizada. Temos também os detalhes em slow motion mostrando o componentes/cérebro do robô espalhados por balas, esmagados por tanques, também reforçam a idéia de humanidade tanto do executor quanto do robô.
A mídia é um ponto interessante de observar nesse momento, pois os trechos de telejornais usados para o arquivo 12-1 mostram passeatas dos robôs, suas manifestações e as repressões sistematizadas sofridas que além de reforçar a idéia de maquina/proletária, também revela o lado da televisão que direciona a transmissão dos protestos mostrando apenas o lado humano/burguês sem mostrar uma entrevista do lado robô/proletário.
Voltando a humanização da máquina, a violência se manifesta não apenas nos massacres, mas no preconceito, na cena em que uma mulher é agredida na rua e quando esta revelasse (para o público como um robô), alega, antes de ser alvejada, “eu sou real”, note que ela não diz “sou um ser vivo”, ela não reivindica para si status de ser vivo e sim de “ser existente”.
Essa relação guiará o filme até uma cena que divide a história, quando é mostrado um chip que se transforma em cérebro. Essa imagem é importante, pois mostra que a máquina alcança uma complexidade igual à humana, busca copiá-la e coabitar o planeta junto a ela. Tendo os robôs fracassados em buscar igualdade com os humanos os sobreviventes se refugiam e fundam uma cidade chamada zero-um. Os robôs não são mais proletários, pois nessa cidade eles usam as maquinas para produzi-los e produzir mercadorias para vender de tudo que os humanos produzem e precisam, mas melhor que eles. Inicia-se o evento chamado de “A Segunda Renascença”, um ponto inalterável e na relação homem-máquina, da qual todos em nossa sociedade temem, na qual guiam as distopias de outros filmes além de Matrix, como Exterminador do Futuro, por exemplo, onde o mundo foi tomado por maquinas que controlam o mundo.
A máquina tão humana quanto os humanos emancipa-se, inicialmente buscando redenção de seus criadores, querendo-conviver com eles igualitariamente, mostrando que sua cidade e sociedade podem se integrar a humana como mais uma entre as demais. Os diplomatas de zero-um que vão a ONU são rejeitados. Este ser humano que não aceitou a competição e superação da cidade de zero-um, que cresceu economicamente, destabilizou o mercado financeiro e superou economicamente os humanos.
A guerra eminente passa a ser de humanos contra maquinas humanizadas, que deixaram de buscar se assemelhar a ela e passa a controlar seu próprio aperfeiçoamento. Mas isso é trazido apenas na parte II do filme.
A humanização das máquinas, latente no filme, expõe a relação predatória do ser humano regida pelo sistema capitalista que o impede conviver com a diferença. Mais do que isso, a humanidade tendo em vista que falhou em seus mecanismos de dominação e arrogando-se como única entidade do planeta detentora das benesses da economia, se lançou de seu recurso mais corriqueiro para garantir seu poderio econômico, a guerra.
Temos neste filme de animação uma síntese que se propõem a dar respostas entre o mundo que os irmãos Wachovsky, colocaram no cinema e a nossa realidade. A exploração do homem pelo homem continua mesmo que o homem dominado não seja de carne e osso e sim maquinas humanizadas. Essa distopia que mostra um mundo onde o ser humano não conseguiu o tal progresso sonhado com a tecnologia, pois seu desenvolvimento tecnológico o prende cada vez mais nas estruturas enclausurantes que ele próprio criou. O diretor soube usar essa liberdade, para preencher esse lapso da história da ficção, aprofundando a questão social mais do que nas duas fracas, e puramente comerciais, sequencias das telas de cinema.
[1] Recomendamos as obras de William Gibson pertencentes a triologia “Covers of the Sprawl”, que são Neuromancer, Count Zero e Mona Lisa Overdrive. Tais obras são base da criação do universo de Matrix que inauguraram a cultura Cyberpunk.
[2] A última cidade remanescente dos seres humanos, no universo de Matrix.
[3] De forma semelhante aos negros escravizados no Brasil que tinham direito como indivíduos reconhecidos apenas quando infringiam a lei, cometendo um assassinato, por exemplo, e eram julgados como pessoas, mas nas relações de trabalho eram coisificados.
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