Cinema pela verdade
06/09/2012 08:23Davenir Viganon
O Cinema pela Verdade é um mini-festival que exibe filmes sobre a época da ditadura militar brasileira e também promove debates após as sessões de filmes. Trata-se de um festival itinerante que pretende passar por todas as capitais do país sendo exibido em instituições de ensino superior e chegou ao Rio Grande do Sul á poucas semanas e já passou pelas faculdades da UNISINOS, UFRGS, FAPA e PUCRS. Sendo que nos dias 24 e 25 passou pela FAPA onde O Fato e a História se fez presente para acompanhar e compartilhar a experiência de debates e cinema promovidas pelo festival. A entrada era gratuita e com direito a certificado, muito aproveitável para os acadêmicos!
Os filmes exibidos no festival foram: "Cidadão Boilesen" (2009) de Chaim Litewski; "Condor" (2007), de Roberto Mader; e "Hercules 56" (2006), de Silvio Da-Rin, "Diário de uma busca" (2010), de Flavia Castro; e "Uma longa viagem" (2011), de Lucia Murat, lançamento de 2012. No caso, do evento que assistimos foram apenas dois dias com os filmes "Cidadão Boilesen" e "Hercules 56" e ao final de cada exibição foram seguidas de uma fala sobre o filme e o contexto da ditadura, assunto que ainda está muito presente e é de pouco conhecimento da população em geral, e no que se refere aos documentos oficiais é semi-obscurecido até para os especialistas, pois os arquivos continuam lacrados.
Cidadão Boilesen
O filme exibido no primeiro dia das atividades foi "Cidadão Boilesen". Qualquer semelhança do documentário brasileiro com o aclamado “Cidadão Caine”, sua ascensão meteórica e queda trágica, não é mera coincidência. Não foi necessário lembrar isso no filme, que conta também com muito detalhes que foram apontados pelo Professor Nilo André de Castro.
Mas antes de dividir o que foi comentado na fala dos professores, vamos para o mais óbvio sobre o filme. O documentário estabelece conexões, pelos depoimentos, entre Henning Boilesen, com a ditadura militar em que o empresário é participante ativo da repressão dando suporte a OBAN (Operação Bandeirante), braço clandestino da repressão origem do DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna).
O filme se divide em três partes, na primeira é contada a vida do dinamarquês naturalizado brasileiro que na sua infância na Dinamarca até sua chegada e consolidação na carreira empresarial. Tudo regado a um alegre samba da época. Na segunda parte, Boilesen é deixado de lado e temos uma contextualização do período, com um contraste bem estruturado no filme: No áudio ouvimos o ponto de vista da mídia da época, e no visual, cenas reais de manifestações e prisões na rua. A música de fundo é: “Brasil ame-o ou deixe-o”. E na última e mais extensa parte do filme começa a ser tecida a ligação entre, Boilesen e a ditadura. Assim o filme volta a infância de Boilesen e o reconstrói (ou destrói) mostrando traços de sadismo na sua personalidade, suas ligações com a OBAN até a sua morte em 15 de Abril de 1970.
Nilo André de Castro e Ricardo Arthur Fitz foram os convidados a debater o assunto e começaram frisando a importância de se deixar claro que a ditadura militar foi uma ditadura civil-militar, com interesses estratégicos dos Estados Unidos. Foi falada a pouca exibição do filme e também o seu fator investigativo, que demorou 15 anos para ser concluído, tudo depois de um longo processo que foi bancado pelo próprio diretor. A falta de acesso aos documentos da ditadura dificultou a realização do filme, pois a falta de vontade política impede sua abertura.
Outra característica do filme foi a riqueza de detalhes, como por exemplo, a presença de Roberto Marinho cumprimentando o presidente Castelo Branco. O momento chave do filme é o que é esclarecido a ligação entre a sociedade civil e militar. O que ficou óbvio, mas não menos interessante, foi a confissão de Eugênio Paes, o Clemente, que deu o tiro de misericórida em Boilesen (na verdade mais de 20 tiros de misericórdia!). Também mostrou que a tortura não foi sistematizada, mas Nilo oferece um contraponto com o filme “Estado de Sitio” em que mostra o intercambio de torturadores profissionais entre o Brasil e outras ditaduras. Outro filme que retrata a racionalização é “A Batalha de Argel”, já analisada neste site. Os comentaristas do filme ainda criticam a idéia que a tortura houve apenas na época da ditadura e que ela acontece a todo tempo e em muitos lugares. Sua prática não foi inventada na ditadura nunca foi abandonada, apenas sistematizada pelo CODI-DOI (conhecido por DOI-CODI por ser mais sonoro). O grande trunfo do filme seria o uso de partes de filmes da época para ilustrar certas idéias, no documentário foram usadas cenas dos filmes “Lamarca”, “Pra frente Brasil” e “Batismo de sangue”.
Hércules 56
O segundo filme do festival foi “Hércules 56”. Ele conta a história do seqüestro do embaixador norte americano no Brasil, Charles Burke Elbrick. Na verdade o filme não conta e sim relembra o ocorrido mostrando muitas entrevistas feitas as remanescentes dos movimentos ativos contra a ditadura, ALN, MR-8, DI-GB. O filme não relembra apenas o evento, mas também suas conseqüências, autocríticas dos velhos guerrilheiros, o pouso no México, a viagem a Cuba. Muitas declarações emocionadas. O filme possuía três dinamicas principais. Entrevistas individuais, a leitura do manifesto revolucionário e uma roda de debate com antigos guerrilheiros. Alternadamente o filme trouxe muitas entrevistas individuais em que é contado como os guerrilheiros trocados pelo embaixador representam diversas tendências políticas que se opunham à ditadura militar. Banidos do território nacional e com a nacionalidade cassada, eles são levados ao México no avião da FAB Hércules 56. Através de entrevistas com os sobreviventes os fatos desta época são relembrados e analisados, participaram do filme, por exemplo os remanescentes do Vôo do Hercules 56 eternizados nessa foto:
Gregório Bezzera, Mário Zonatto, José Ibrahin, José Dirceu, Luis Travassos, Ricardo Villas, Wladmir Palmeira, Rolando Frati, Maria Augusta, Ivens marquetti, Flávio Tavares, Ricardo Zarantini, Agonaldo Pacheco, João Leonardo e Onofre Pinto.
Emblematicamente, os dois que erguem as algemas, mostram que seu crime não é um crime comum, como prisioneiros políticos, não carregam a culpa pelo crime. Ao mostrar as algemas os presos fazem um protesto de um sistema que prende inocentes.
Outra dinâmica do documentário foi uma mesa redonda, com vários integrantes de movimentos revolucionários já citados. Intercalando também, a leitura da carta de reinvidicações assinada pela ALN/MR-8 acompanhada de imagens da época. Leitura essa que era inclusive uma das condições para a libertação do embaixador.
A obra é um filme autenticamente documental, abusou do uso das entrevistas, inclusive nas dinâmicas propostas, bem aprofundado e com uma carga emocional que nenhum locutor consegue transmitir e que só quem esteve lá pode passar. E para comentar esse filme nada melhor do que quem viveu no período. O militar José Wilson da Silva faz um excelente apanhado desde a revolução russa de 1917 até a época do filme. Sua fala centra-se no momento em que viveu salientando que antes da situação chegar ao ponto de “guerrilheiros x torturadores”, o golpe já vinha sendo tramado e os primeiros a serem excluídos das esferas públicas foi a oposição dentro do Estado. Nacionalistas, comunistas foram “varridos” do Estado e postos fora do jogo político do país.
Caso se interessarem pelos filmes, ai vai os links:
CIDADÃO BOILSEN (PRIMEIRA PARTE) https://www.youtube.com/watch?v=G-QSD-vU38k
HÉRCULES 56 (FILME INTEIRO) www.youtube.com/watch?v=xxPNQfNpkOo
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