Educação e racismo
18/02/2014 09:36Gregório Grisa - Releituras da Revista O Fato e a História
Essa breve reflexão objetiva nos provocar diante do desafio de trabalharmos as relações étnico-raciais na educação. O tema ou problema de que vamos tratar é político e cultural, e esses dois prismas perpassam a gestão educacional e o currículo das instituições, redes e sistemas de ensino.
Esse assunto é dotado de características bastante particulares, tratar das relações étnico-raciais nos espaços educativos é mergulhar em polêmicas, em casos de constrangimentos, em posturas problemáticas, em situações de invisibilidade e silenciamentos tidos como naturais. O racismo é o sentimento social pior resolvido da nossa nação, porque perpassa todas as classes sociais, todos os segmentos religiosos e, por ser um mecanismo de várias faces, se apresenta por vezes diluído, e assim sendo, naturalizado e legitimado ou de forma concreta, na qual se materializa na violência e na negação de direitos.
Ao mesmo tempo em que devemos aplicar a lei 10,639/2003, que constitui as diretrizes gerais para promoção da igualdade racial através do estudo e ensino da cultura afro-brasileira, o que por si só já é um desafio imenso, temos a missão de desnaturalizar práticas, condutas e pensamentos racistas e preconceituosos que existem nas escolas e universidades, ou seja, desnudar o que está dado e se repete cotidianamente e que pouco notamos ou sobre o que pouco pensamos.
Porque as pessoas negras compõem a maioria dos analfabetos, têm os menores índices de escolaridade, são as que mais evadem dos espaços escolares, são maioria na população carcerária e ocupam os postos de trabalho menos valorizados no Brasil? Essa pergunta não tem uma resposta única e deve ser feita com regularidade pelos profissionais da educação. Há vários estudos contemporâneos que comprovam que existem mecanismos intra-escolares de discriminação que acabam por “encaminhar” as crianças e os jovens negros para fora da escola no Brasil, os dados oficiais ilustram o funil que representam o fim do ensino fundamental e do ensino médio.
O racismo de tanto ser cultivado virou cultura, foi reproduzido, angariou um valor social, se naturalizou e perpassa toda sociedade. Como cultivar agora, no nosso tempo, outra dinâmica, a do respeito às diferenças étnico-raciais? Como desenvolver um currículo que não siga legitimando o racismo, que não pré-determine o lugar profissional do cidadão e da cidadã negra?
Esses são alguns desafios colocados para os profissionais da educação, mas mais um forte empecilho é encontrado ao travar essa luta. Essa tarefa não se trata de um simples embate entre nossa boa vontade política e o racismo que se apresenta no nosso meio. O racismo se revitaliza constantemente, se moderniza, toma outras formas e conforme a estrutura social se modifica e se adapta. Com isso, quero dizer que vamos continuar por muito tempo com a necessidade de compreender e perceber o racismo no formato que ele se mostra em um dado momento histórico para que possamos combatê-lo.
Esse assunto tem se mostrado um dos mais áridos para se trabalhar com os professores, em geral pelo fato de que o arcabouço de conhecimento que temos sobre o patrimônio histórico e cultural de matriz africana é muito pequeno e isso, além de limitar a prática, também desacomoda, o que nem sempre é bem aceito. Quando pensamos em cultura afro-brasileira, nos remetemos imediatamente, ao samba, ao carnaval, a capoeira, ao futebol ou as religiões advindas da África como umbanda, macumba, candomblé e outros.
Aqui temos um limitador, corremos o risco de oferecer como cultura afro-brasileira somente uma parcela dela, em muito confundimos cultura com arte. É claro que mencionei acima o que está no imaginário popular sobre o que é cultura afro-brasileira, e que um professor de história sabe da estrutura econômica e política dos quilombos, das resistências escravas e do papel do negro no desenvolvimento da agricultura, pecuária, mineração, metalurgia, irrigação e da arquitetura do Brasil. Os professores de literatura sabem da importância dos escritores negros, assim como os sociólogos sabem o que o movimento negro representa como força social e política, e os matemáticos sabem do pioneirismo egípcio na geometria e nos cálculos em geral. Se não sabem, deveriam saber.
O problema é que essas dimensões que transcendem o guarda-chuva da arte estão alocadas em disciplinas específicas e, o que é pior, dificilmente se transformam em conteúdo e, se sim, são relegadas a temas secundários. Os negros no Brasil crescem sem se conhecerem, sem se apoderarem da sua história e de seus antepassados, sem acessarem informações que fazem parte da construção do ser que ele é hoje e da identidade do seu grupo social. A população afro-brasileira é privada disso porque não frequenta a escola? Não, pelo contrário, apesar dos avanços dos últimos anos, é na escola que lhe é negada o direito de se reconhecerem na cultura nacional. Os que estão fora da escola e das universidades sofrem uma dupla negação de direitos, são privados do acesso ao conhecimento historicamente construído e da valorização dos saberes do seu povo.
O princípio da igualdade deve ser o norteador de toda prática pedagógica, porém a igualdade prevê semelhanças e diferenças e nunca a inferiorização. Infelizmente, essa inferiorização ocorreu e ocorre sistematicamente na educação brasileira, enquanto o sujeito branco sempre ocupou os papéis de destaque na sociedade, o negro além de não disputar esse espaço foi estigmatizado por séculos. Não há equidade em uma relação como essa, portanto está nítida a necessidade de reescrever a história, levando em conta a perspectiva da participação da população negra na formação da nação brasileira.
Para que isso ocorra, é fundamental o processo de positivação da imagem e identidade da população negra, é difícil equilibrar relações que foram e são tão díspares, para quem sempre foi inferiorizado nada mais justo do que agora ser afirmado ou positivado. As ações afirmativas surgem nesse contexto.
Portanto, para além de buscar espaços para incrementar o debate étnico-racial na vida pedagógica das instituições é importante que alguns equívocos pontuais que permeiam o imaginário coletivo sejam corrigidos, finalizo com eles a seguir:
- os negros são racistas também e se discriminam entre si. Esse argumento pena quando conhecemos o processo ideológico de branqueamento pela qual passou a formação da nação brasileira. O que pode ocorrer é termos uma forte influência dessa ideologia em pessoas negras que tendem a reproduzir o preconceito que sofreram por anos e ainda sofrem.
- o debate sobre o racismo e preconceito se restringe a população negra e alguns estudiosos. Enquanto pensarmos assim seguiremos reforçando o pensamento racista e a naturalização deste. O racismo, o mito da democracia racial e a ideologia de branqueamento atingem todo o povo, toda vida social e política do país e não somente os afro-brasileiros.
- um equívoco potenteque deve ser revisado é a crença cega da meritocracia, esse argumento é bastante usado no debate sobre cotas nas universidades. As trajetórias pessoais contemplam uma diversidade infinita de limitações e privilégios, no entanto, o ponto de chegada ao se fazer uma prova, uma seleção, um trabalho exige um arcabouço teórico e prático muito específico e reconhece saberes e valores eurocêntricos e hegemônicos. As avaliações que balizam o que chamamos de mérito estão contaminadas pela profunda desigualdade social e racial existente.
Gregório Grisa é Doutorando em Educação na UFRGS e em Ciências Sociais na UA (Universidade de Aveiro) – Portugal. Bolsista CAPES.
Referências:
GRISA, Durlo Gregório. Reorganização Curricular para a Educação as Relações étnico raciais. In: ZITKOSKI, Jaime José, MORIGI, Valter. Educação Popular e Práticas Emancipatórias: Desafios Contemporâneos. Porto Alegre: Corag, 2011.
GOMES, Nilma Lino. Afirmando direitos: acesso e permanência de jovens negros na universidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. 294 p.
______. Organizadora. Um olhar além das fronteiras: educação e relações raciais. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 136 p.
GUIMARAES, Antonio Sérgio Alfredo. Depois da democracia racial. Tempo soc.,São Paulo, v. 18, n. 2, Nov. 2006. Disponível em: < https://www.scielo.br/pdf/ts/v18n2/a14v18n2.pdf> Acesso em: 17 de out. 2012.
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