“Elysium”, “Ebola” e “Conto de duas cidades”

12/08/2014 10:16

Alexander Martins Vianna

Quem costuma pensar no provérbio que diz que a morte e a doença nivelam, certamente não assistiu ao quanto isso é desafiado no filme Elysium (2013), onde o apartheid se traduz não mais em termos raciais, mas estritamente sociais: em Elysium (Céu), a medicina possibilita que a elite nunca morra, pois pode haver a regeneração perpétua de tecidos, a recuperação de danos sérios ao corpo e a cura de doenças contraídas ou degenerativas; enquanto o restante da Terra vive a superpovoação, a escassez de recursos, o policiamento ostensivo desumanizado e a vulnerabilidade da vida e nos empregos. Então, temos encenado a tópica das duas “cidades”: a celeste e a terrestre, socialmente e biologicamente apartadas, mas unidas pela necessidade do trabalho humano em fábricas, embora a robótica tenha avançado a ponto de substituir o aparato policial. Do ponto de vista da verossimilhança dramática do roteiro, isso é o que mais fragiliza o enredo do filme Elysium. Afinal, se é possível criar robôs que são policiais com algum discernimento, qual o sentido de haver fábricas na Terra que ainda dependem da mediação humana e da vigília de robôs?

Além do repisado tema do “escolhido” (desde Matrix) em torno do protagonista que se ciborguiza para solapar um “sistema ciborgue” de eficácia tecnológica e de exclusões social e biológica, o filme tem o imperativo maior de representar em sua trama crítica os temas da luta de classe, do apartheid social e da violenta repressão contra a imigração ilegal na Terra dos afortunados. O que vai borrar a fronteira entre Céu e Terra não é a imigração ilegal em si, pois esta não tem como se esconder em Elysium por muito tempo, mas o propósito central das ações dos “desafortunados da Terra” ao imigrarem: conseguir uma identidade falsa para ter acesso aos serviços médicos mais avançados de Elysium. Várias tramas de ficção científica de boa qualidade são verdadeiras sinédoques de tensões sociais profundas que tentam traduzir num cenário exótico extremo e futurista. Nesse sentido, os produtores e diretores do filme Elysium conseguiram manter o mesmo tipo de agenda crítica já experimentado no filme Distrito 9. Em ambos, é a doença (ou o risco de contaminação) que torna viscosas as fronteiras sociais e biológicas.

Embora já seja um pouco tarde para avisar ao leitor, isto não é um ensaio sobre o filme Elysium. Aqui, o filme serve apenas como pretexto para eu refletir, por meio de seus elementos de enredo, sobre o atual panorama de epidemia de Ebola na África Ocidental. Neste quadro, as relações entre o surto epidêmico de Ebola, a vulnerabilidade social, a falta de política de saúde nos países afetados, a corrupção da elite local, a alta concentração de renda mundial e a ação predatória de corporações norte-americanas, europeias, indianas e chinesas – para falar dos atores principais –, sempre indiferentes ao destino da população africana (cujas necessidades não se resolvem com as ações caridosas e licitações duvidosas de empresas mediadas pela ONU), estão dando prova, para quem quiser ver, que o Ebola – a face atualmente mais dura de violências institucionais, políticas, sociais e econômicas que perduram por décadas – será o começo de várias outras epidemias que farão os vários “Elysium” no planeta Terra a terem de repensar os seus contatos e contratos com as terras africanas.

Não se iludam quanto a isso! A doença não nivela, nem solidariza, mas revela, em sua indiferença à nossa existência, o que somos capazes de fazer de danoso com uma fração substantiva da Terra por meio do poder econômico e os seus meios tecnológicos de ação. Quem não morre antes de voltar para seu “Elysium”, consegue a cura quando chega lá, mas não quem foi deixado para trás, vítima de sua caridade... Por este viés, a doença é apenas um acidente social e economicamente construído (em seus efeitos) pelo capitalismo sem mais concorrentes em paradigma no mundo atual, e que acredita que “band-aids” caridosos vão manter sustentáveis os seus “Elysium”, tal como um “Conto de Duas Cidades”. Bom, conto é conto, não é, Charles Dickens?... Mas não posso negar o poder da negação... Parece que funcionou até agora..., até o Ebola...

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