História e cultura afro-brasileira - A necessidade de revisão didática para a prática do ensino de história

30/01/2014 08:38

Rafael Lapuente - Publicado originalmente na Revista O Fato e a História nº3

Ao longo da história da educação brasileira, a população negra ficou em segundo plano, tanto como agentes receptores da ação de ensino aprendizagem, como personalidades ativas do processo histórico, social e cultural da formação e da identidade brasileira. Mesmo sendo maioria, a população negra e parda ainda é vítima de etnocentrismo, preconceito e desvantagem social e econômica. Tais fatores remetem à consequências no exercício da cidadania e, entre os setores básicos da cidadania, está o exercício do direito à educação.

A inferioridade de condições à população de descendência africana é histórica na sociedade brasileira. Após quase 400 anos servindo de mão de obra escrava, a população afro descendente, que durante esse período praticamente não teve acesso à educação formal, assistiu a um processo abolicionista na primeira metade da década de 1880 em localidades regionais e, posteriormente, a nível nacional em 1888, não ser acompanhada por um programa de emancipação igualitária, política e econômica, implicando reais dificuldades para a participação da população negra em todos os setores sociais em geral, e na vida escolar e acadêmica em particular.

Tendo essa assertiva como fio condutor, estudaremos nesse breve artigo a emergência da revisão didática para o Ensino de História, visando a valorização e destaque da contribuição africana para a formação cultural, econômica e política do Brasil.

No ensino de História, o desrespeito com a visão dos povos africanos foi um agravante para a desconsideração – e, até mesmo, desconstrução - cultural na prática educacional.

Apesar de, oficialmente, se negar isso, na prática vemos outra realidade. Vejamos o que dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais:

O aprofundamento de estudos culturais, principalmente no diálogo da História com a Antropologia, tem contribuído, ainda, para um debate sobre os conceitos de cultura e de civilização. Alguns historiadores rejeitam o conceito de civilização por considerá-lo impregnado de uma perspectiva evolucionista e otimista face aos avanços e domínios tecnológicos, isto é, com uma culminância de etapas sucessivas em direção a uma cultura superior antecedida por períodos de selvageria e barbárie. Nessa linha, valorizam a idéia (sic) de diversidade cultural e multiplicam as concepções de tempo. A idéia (sic) de um tempo apenas contínuo e evolutivo, igual e único para toda a humanidade, também é confrontada com o esforço de perceber e iluminar a descontinuidade das mudanças, evidenciando, por exemplo, a convivência, na mesma época, de povos que utilizam diferentes tecnologias, como no caso de sociedades coletoras que são contemporâneas de nações que dominam recursos tecnológicos capazes de explorar oplaneta Marte. (BRASIL, 1998, p. 32-33. Grifos meus)”

Apesar dos Parâmetros Curriculares Nacionais ratificarem a rejeição do conceito de civilização, por considera-lo etnocêntrico, a África ainda é abordada como um continente de faceta uníssona, atrasada, com epidemias de fome, seca e guerras entre tribos selvagens e bárbaras, dando a visão de que a cultura dita ‘ocidental’ seja superior às múltiplas e diversificadas tradições que existem na África, e não apenas esse espectro singular que, grosso modo, se tem do continente.

Ainda são, por exemplo, exceções às vezes em que se aborde a escravidão sob a perspectiva do indivíduo que foi arrebatado de sua cultura e seu habitat, bem como interrogue a abolição e a maneira como foi posta em prática ou, não obstante, explane que tal fato não foi uma dádiva cedida pela Princesa Isabel.

Sendo assim, no ensinar História, isso neutraliza o questionamento do pensamento etnocêntrico que perpetrou boa parte da história brasileira. Segundo Lilia Moritz Schwarcz (2013, p.112) :

Ao branco, cabia representar o papel de elemento civilizador. Ao índio, era necessário restituir sua dignidade original, ajudando-o a galgar os degraus da civilização. Ao negro, por fim, restava o espaço de detração, mas uma vez que era entendido como fator de impedimento ao progresso da nação.”

Uma das primeiras medidas para a alteração do enfoque didático da participação do negro na história dentro da sala de aula é questionar determinados paradigmas vistos como tradicionais

dentro do lecionar história. Munanga (apud ALVES, 2007, p. 12) cita que as primeiras referências de um povo negro inferior foram feitas já por Heródoto, que relatava a existência de seres semihomens, semianimais nas costas africanas em suas viagens marítimas.

De acordo com Zamparoni (1995, p. 515), “quem olha para os currículos escolares, do primeiro grau à universidade, - salvo raras exceções – não vê a presença negra, senão restrita a algumas lamúriasnas poucas páginas dedicadas à escravatura”. Sobre isso, Leandro Carvalho (2012, grifos do autor) ainda questiona:

Quando nos referimos, em sala de aula, ao escravo africano, nos equivocamos, pois ninguém é escravo – as pessoas foram e são escravizadas. O termo escravo, além de naturalizar essa condição às pessoas, ou seja, trazer a ideia de que ser escravo é uma condição inerente aos seres humanos, também possui um significado preconceituoso e pejorativo, que foi sendo construído durante a história da humanidade. Além disso, nessa mesma visão, o negro africano aparece na condição de escravo submisso e passivo.”

Em cima dessa visão do negro africano submisso e passivo, citado superficialmente por Leandro Carvalho, Elisa Karlin Nascimento (apud ALVES, 2007, p.27) explana:

Dá-se a impressão que o africano nunca lutou pela própria liberdade, e freqüentemente (sic) reforça-se esse estereótipo com a alegação de que o negro veio aqui para suprir a necessidade de mão-de-obra provocada pelo amor à liberdade e conseqüente (sic) inadaptabilidade do índio ao regime escravista.

Segundo Malatova (2012), de maneira geral, a abordagem de ensino demonstra problemas em sua tradição eurocêntrica4, que ora excluem conteúdos, ora os abordam sob um olhar estereotipado, e também na dificuldade de inserção das temáticas em sala de aula devido à defasagem na formação docente. Completa Malatova corroborando que a África é vista, grosso modo, como um continente marcado pela sujeição e tráfico de escravos, prevalecendo à ideia de sujeitos sem história.

O ensino de história no Brasil sempre esteve atrelado a uma visão eurocêntrica e vista de cima. Não raras eram às vezes em que a história narrava exclusivamente à versão dos dominadores, e exploradores, em detrimento de uma variante dos dominados e explorados. Tal característica no ensino de história apenas neutraliza o questionamento e o senso crítico, evitando o contraponto e exaltando os ‘feitos heroicos’ – que heroísmo? - de uma classe dominante. Ter conhecimento de tal característica ao longo da história do ensino de História é fundamental para, primeiro, discutirmos essa característica excludente e, segundo, entendermos o porquê da seriedade do estudo da história e cultura afro brasileira, para, assim, saber por que levou tanto tempo para adquirir a dimensão da importância de se estudar essa temática em sala de aula.

A constituição da base da pirâmide social brasileira é, majoritariamente, formada por pessoas de descendência negra ou parda. Obviamente, essa constituição não é um acaso: A nação brasileira, desde o início daquilo que dá para se chamar de ‘formação’, utilizou como mola propulsora as mãos de negros da diáspora e de indígenas presentes na região, alcunhada por europeus de América Portuguesa, para o trabalho e exploração. A enorme quantidade de pessoas que foram empregadas nesse tipo de atividade também cedeu, ao longo da história do Brasil, uma enorme diversidade cultural, sobretudo devido às múltiplas culturas africanas que desembarcaram em território brasileiro, misturadas com hábitos indígenas, portugueses e de imigrantes de diversas regiões do mundo que cá desembarcaram, formando características ímpares na linhagem brasileira.

Entretanto, apesar disso, o ensino de história se mostra ainda carregado de conceitos e visões pejorativas e excludentes, sob visão e versão de uma minoria que, grosso modo, desrespeitou a população indígena e da diáspora africana, praticando o lecionar sem nem mesmo levar a questionamento tais práticas, tampouco a dar voz aqueles que foram explorados e arrancados de seus matizes culturais para servir a uma elite dominante.

Essa assertiva foi motivadora para, em 2003, o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e o Ministro da Educação, Cristovam Buarque, sancionarem a lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro brasileira em todos os estabelecimentos de ensino. Entretanto, além da lei ter enormes brechas que possibilitam sua não efetivação na prática, ainda por cima não prevê nenhum plano de capacitação de docentes nem um planejamento básico que seja norteador para a prática didática da temática em sala de aula, tampouco uma sistematização de fiscalização quanto a real prática dos conteúdos nos estabelecimentos de educação básica. Essas lacunas são graves problemas que podem, de fato, serem agravantes para a não reversão de uma característica excludente da história ensinada em sala de aula e de uma adequada revisão pedagógica dos conteúdos abordados e ensinados.

Todos esses fatores levam ao questionamento sobre a real democracia nos conteúdoslecionados de uma maneira geral na disciplina de História. Não se pode negar que, especificamente nos últimos dez anos, os estudos sobre a cultura afro nas escolas avançou como nunca, bem como o início da quebra de padrões que, historicamente, se conservaram fixos e arraigados na prática escolar.  Todavia, ainda há muito a avançar.

Afinal de contas, é sempre bom questionar: para que(m) deve servir a história mesmo?

Referências

ALVES, Roberta de Souza. Ensino de História e Cultura Afro Brasileira e Africana: Da lei ao cotidiano escolar. 2007. 73f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Pedagogia) –

Faculdade de Ciências da UNESP, Universidade Estadual Paulista, São Paulo.

BRASIL. PCN Ensino Médio: Orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília: MEC, [199?]

______. Parâmetros Curriculares Nacionais: História. Brasília: MEC, 1998

______. Congresso Nacional. Lei 10 639. Disponível em: . Acesso em: 06 jun. 2013.

CARVALHO, Leandro. Lei 10.639/03 e o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana. Disponível em: Acesso em: 20 maio 2013

MALATOVA, Cláudia Mortari. O ensino de História das Áfricas e das populações africanas e afro descendentes da diáspora. UDESC. P. 01-17. 2012

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras. 1993.

ZAMPARONI, Valdemir. A situação atual dos estudos africanos no Brasil. In: Actas do Colóquio Construção e Ensino de História da África, p. 515.

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