Maria da Graça Meneghel: um mito
24/05/2012 13:00Daniel Baptista
Quem viu o fantástico do último dia 21 de maio, não conteve a emoção e foi as lágrimas com o depoimento corajoso de Maria. Maria vai ainda essa semana - depois do seu depoimento – ser beatificada ainda em vida pelo Vaticano. Como é valente essa Maria! Primeiro, ela é uma predestinada. Segundo a própria, ela viu o que muita gente não viu e nem poderá ver. Todos queriam casar com a Maria, vejam só! Até Michael Jackson quis dar um tempo nas crianças e provar o que o rei Pelé degustou!
Esta Maria é mesmo incrível! A vida foi generosa com ela, a oportunidade de brilhar surgiu assim: num trem! Onde milhões de rostos tão bonitos quanto ou mais bonitos que o rosto da Maria passam anonimamente... vagão por vagão... diariamente. Mas o destino quis que Maria fosse à escolhida para vender botas idiotas que até minha irmã teve em sua tenra infância, numa época em que a inflação era galopante e milhões de pais deixavam de comprar algo mais útil, para as suas filhas serem que nem a Maria... mas não é culpa crianças, nem dos pais... afinal esse é o papel da Maria como é o de Neymar hoje: vender sonhos.
E Maria, predestinada que só ela, estava na hora e no lugar certo para que todos esses sonhos fossem possíveis para milhões de crianças do Oiapoque ao Chuí, da Serra da Contamana a Ponta dos Seixas. Maria está associada a uma fábrica inesgotável de fantasia e alegrias: a rede Globo (poderia ser qualquer emissora). Vide as novelas – que segundo os próprios – refletem a realidade do brasileiro, eu mesmo tomo café no Leblon ao som de uma bossa nova sonolenta, moro em um apartamento de frente pro mar e como tenho muito tempo livre e muito dinheiro, fico matutando em como vou ferrar, ou até matar a minha irmã para ficar com a fortuna da família... e quem me conhece sabe que eu sou alto, com uma cútis nórdica e como os olhos claros com todo o brasileiro, como a Maria.
O depoimento de Maria é comovente porque “O relato audiovisual seduz porque permite ao receptor o encontro com as zonas mais ignoradas ou ocultas de seu inconsciente” (FERRÉS, 1998 p. 94). Aquele cenário bucólico, com um ar de despedida, com um piano acalentador ao fundo, dando um tom de calmaria e de “vamos fazer as pazes” nos toca profundamente. Atingindo-nos de uma maneira que parecemos estar nos deslocando para outra zona mais confortável da vida, e estamos. Mas as zonas do cérebro. E Maria, como é pau mandada da emissora, abre o seu coração para milhões de pessoas que se identificam com Maria, pois Maria faz parte da construção lúdica e social de todos nós que um dia cantamos todas as manhãs com a Maria quando éramos pequenos brasileirinhos, e os mais altinhos se empolgavam com Maria, mas por outros motivos...
E Maria foi abusada... eu não quero incentivar a violência de nenhuma natureza aqui. Quero deixar bem grifado este item. Mas é que o fato de Maria ter sido abusada é mais grave para nós porque ela é parte de nós afinal “Como crianças frente aos contos, o espectador adulto participa emocionalmente nas narrativas mediante os mecanismos psicológicos da identificação e da projeção.” (FERRÉS, 1998 p. 96) a criança que está dentro de nós se identifica com a Maria, e a Maria fez nossas vidas mais felizes, fazendo-nos passar horas na frente da televisão e comprar as suas cópias de plástico e outras bugigangas que eram de suma importância para a nossa existência. Logo, tudo que vem de Maria nos interessa. Quando Maria se for, o País acompanhará um dos maiores funerais de todos os tempos, creio eu. Terá importância tão grande quanto os de Pelé, Roberto Carlos, acho que até o Sílvio Santos... Maria nos comoveu com o seu relato porque ela está na televisão. “Todas as indústrias do espetáculo, desde a musical até a esportiva, criam as suas estrelas. Mas provavelmente, as estrelas mais rutilantes deste século apareceram no firmamento das comunicações audiovisuais, porque é esta a indústria que tem uma incidência mais direta sobre o imaginário individual e coletivo. (FERRÉS, 1998 p.114).
Provavelmente exista alguma Maria da Graça que hoje também tem 49 anos, muito mais propício que essa mulher exista na região norte ou no nordeste do País, onde a concentração de pobreza é maior. Essa Maria também foi abusada na infância, mas por ser parda ou negra, analfabeta ou semi, essa Maria só conheceu os meandros da tristeza e abuso sistêmico de seu corpo, coisa que ela faz até hoje para garantir a sua sobrevivência, desde a infância, ininterruptamente desde a sua infância. E, no entanto ninguém se comove ou sente compaixão. Talvez ela tenha uma estrela de má sorte, ao contrário da Maria cariúcha. E também não nos interessa o drama dessa anônima porque estamos ocupados demais com a saúde mental da Maria depois do domingo último. Mas não é nossa culpa. É porque um dia nos venderam que ser Maria é ser bom. E assim passaram gerações de brasileiros. Sonhando em ser ou ter a Maria.
Referencias
FERRÉS, Joan. Televisão subliminar: Socializando através de comunicações despercebidas.
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