O cinismo disfarçado de silêncio

04/12/2012 08:25

 

Dhiego Recoba

Muito se fala na blogosfera sobre o grau de influência que a rede globo tem desde sua fundação, das relações promíscuas que estabeleceu com o poder, principalmente a partir do golpe de 1964. Sabemos o quanto era necessário aos militares uma rede de comunicação que abrangesse o Brasil em todas as suas dimensões, de modo a manter a coesão popular em torno da “causa democrática” idealizada pela Escola Superior de Guerra, e de transmitir às massas o sentimento de que a ditadura era “um mal necessário” A Rede Globo foi a responsável em manter as barbaridades cometidas pelo regime nos porões do silêncio, sob o pretexto do perigo do comunismo. Lembremos-nos do general Médici, que dizia tomar um calmante sempre que assistia ao Jornal Nacional, pois lá encontrava um Brasil em paz, tranquilo. Em suma, o método seletivo da informação determina o que a opinião pública discute na mesa de jantar. Para que se tenha uma idéia de quanto esse controle sobre a mentalidade do brasileiro é acachapante, experimente dizer que não acompanha a novela das oito, quando esta alcança altos níveis de audiência.

Sim, o brasileiro encara a realidade como uma novela. Sob o viés de uma coerência maniqueísta estúpida, nos últimos cinquenta anos cada um de nós foi ensinado a conceber o Brasil da seguinte forma: os vilões são os políticos, e de tempos em tempos surge um candidato a salvador da pátria para livrar a sociedade dessa coisa nojenta e de gente vil chamada “política”. Tudo é uma extensa negociata sórdida, e a única natureza sóbria existente é a mídia tradicional, na voz dos seus sabujos simpáticos de topete branco. Sem dúvida, o congresso nacional lembra muito a sucursal do inferno, onde parte substancial de seus membros joga de acordo com os interesses das bancadas a quem representa e, principalmente, aos financiadores de suas espetaculosas campanhas políticas igualmente interessados nas decisões que lá ocorrem. Tudo uma questão de negócios. Nada mais comum em um sistema político como o nosso, viciado na corrupção e dependente dela.

A realidade filtrada pelos editores de vídeo revela-se incrivelmente simplória, cuja tacanhice beira à ofensa para qualquer bom observador. Na última década, um expressivo número de parlamentares foi alçado ao posto de varão da ética. Para ficar apenas nos mais “contundentes”, recordemos o dedo em riste de Arthur Virgílio, Tasso Jereissati e Demóstenes Torres, três principais líderes de oposição ao longo da era Lula. Registra-se que o primeiro garantiu dar uma surra no ex-presidente, durante plenária no senado federal. Um exemplo de civilidade.

A mais recente virgem imaculada proposta pela mídia afinada foi Demóstenes Torres, o ex-senador cassado em virtude de suas relações escusas com o contraventor Carlinhos Cachoeira, o bicheiro que os William’s pigais já chamaram de “empresário do ramo de jogos eletrônicos”, um eufemismo para caracterizar as atividades de quem acaba de ser condenado por formação de quadrilha e tráfico de influência.

Recordar é viver, sobretudo em um País cuja memória mais sólida do ano é a da última vilã da novela das oito. Cachoeira abastecia o diretor da Veja em Brasília, Policarpo Jr., com grampos e vídeos obtidos, no intuito de detonar adversários políticos do grupo. No outro lado da ponta aparecia Demóstenes Torres, recheado de princípios éticos, criando a pauta para a imprensa oposicionista deitar e rolar no noticiário semanal, de segunda a segunda, uma overdose do mais puro factoide no estilo de informação. Se a linguagem hegemônica nas terras de Cabral é o “globês”, fiquemos apenas no “núcleo contraventor-político”. Sua maior ação foi o vídeo em que Valdomiro Diniz aparece pedindo dinheiro à Cachoeira para a campanha do PT, em troca de facilidades em processos de concorrência pública. Conta-se que a recusa de José Dirceu ao nome de Demóstenes Torres para o cargo de secretario nacional de justiça foi o catalisador da gravação. Não é necessário ser petista para encontrar a razão da patranha, basta pensar com um pouquinho de discernimento: tal posição de comando seria um prato cheio para o esquema Cachoeira-Demóstenes, um passo para abrir a lavanderia do dinheiro sujo da dupla. Logo, o vídeo foi uma escolha plausível para quem tinha demasiado interesse no assunto e os meios para alcançar suas finalidades.

Soma-se a este grupo mais uma peça importante, descoberta ao longo do processo.  Roberto Gurgel, o Procurador-Geral da República que montou uma tese condenatória sem prova alguma contra as lideranças do PT, foi descoberto pelo senador Fernando Collor em flagrante crime de prevaricação ao decidir não dar sequência à denúncia da operação Vegas, que há três anos já havia juntado provas suficientes para prender a quadrilha. Não sendo o bastante, o mesmo procurador-geral aparece de forma comprometedora nos diálogos obtidos pela Polícia Federal. Sobre os porquês de sua morosidade com a operação Vegas, Gurgel disse que não havia indícios de ilícitos, apenas conduta ética inadequada. Um comportamento no mínimo incoerente e duvidoso para quem se mostrou tão implacável na denúncia contra os mensaleiros.

No caso anterior, o papel do procurador-geral foi decisivo e inadmissível para quem ocupa a posição de representante do interesse público: Gurgel retardou o trabalho da polícia federal ao descartar os dados obtidos pela operação Vegas, que obrigou os agentes a montarem outra, a operação Monte Carlo, visando indiciar as pessoas envolvidas. Ou seja, a atitude travessa do procurador-geral custou caro aos cofres públicos. Mesmo assim, não vimos nenhum dono da ética levantar a voz e pedir a cabeça do mesmo Gurgel.

Coisas desse nosso Brasil varonil, violado diariamente por indivíduos com poder demais e escrúpulos de menos, sempre ajudados por uma mídia interesseira que conta apenas uma versão dos fatos: a dos proprietários dos meios de comunicação, que em momento algum demonstraram preocupação com o real provedor da prática corrupta: o sistema político vigente que privilegia o capital privado em detrimento do interesse público. Quem financia os Perillos e Demóstenes de sempre são construtoras como a Delta, amplamente representada nos autos da PF, e assim o faz com os demais partidos. Romantismo não existe em política, é necessário se precaver de todos os lados. É o popular “a ocasião faz o ladrão”.

Há um projeto de reforma política tramitando no congresso nacional, sob a relatoria do deputado Henrique Fontana (PT-RS) que visa alterar pontos importantes desta estrutura. Questões como o financiamento público, gerido a partir de um fundo criado para esse propósito; a estipulação de um teto para os gastos de campanha, bem como o fim das coligações partidárias em eleições proporcionais é contemplada no projeto. Em virtude de algumas propostas se configurarem em mudanças na constituição, o relator pretende levar à consulta popular o projeto de reforma política ainda no próximo ano.

Curioso é que as mesmas vozes inquisidoras que condenaram a cúpula do partido dos trabalhadores por compra de votos não responsabilizam o ordenamento do sistema político como o foco da corrupção. O único crime que ficou provado foi o de caixa dois (o que Valdomiro Diniz fazia no vídeo mesmo?), o qual é utilizado por todos os partidos, e que apenas deixará de ocorrer quando o capital privado perder o poder de barganha que possui na relação com o público. Não o parlamentar, e sim o mandato que lhe é investido pelo povo. Todo o poder emana dele ou é apenas um cliché presente em nossa constituição?

Fato é que não se verá os velhos piguentos lutando nesta frente, que não é a mesma do aprimoramento do estado democrático de direito - algo que o STF fez pouco caso nos últimos meses, sob pena de linchamento midiático. Por parte da mídia, não há interesse algum de mudar a natureza do sistema político (quem era mesmo que requentava as capas da veja no noticiário de sábado à noite?). Não nos deixemos enganar: a rede globo e seus porcos anexos dependem do editorial “o Brasil é uma m...”, e sua existência está atrelada ao modelo em vigor, que faz a ocasião e se configura na porta aberta para as “aves de rapina” do Dr. Getúlio, sempre à espreita, sem identidade ou compromisso nacional, tendo apenas os seus passaportes em mãos. Miami sempre os espera. Até que se ataque o cerne da questão, continuaremos envolvidos por um falso sentimento de justiça, motivados por um espírito condenatório que não perdoa as blasfêmias da esquerda que ousou chegar ao poder, mas que ao mesmo tempo é uma mãe compreensiva com os assaltantes de sempre. Tudo dentro do script novelesco. Afinal de contas, o show não pode acabar.

Links úteis e esclarecedores:

Quem são e o que fazem os jornalistas de Cachoeira?

https://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21296

O roteiro da novela mensalão:

https://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=21252

Sobre como nosso sistema democrático é um títere nas mãos da grande imprensa:

https://www.rodrigovianna.com.br/radar-da-midia/inglaterra-investiga-imprensa-no-brasil-nao-pode-e-revanchismo-e-atentado-contra-liberdades.html

Vídeo: Collor acusa Gurgel de vazar sigilo à Veja:

https://www.youtube.com/watch?feature=player_embedded&v=imKeHtYGsl4

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