O Levante ucraniano: a luta entre o duplo nacionalismo e o mercado consumidor

09/01/2014 08:05

Gabriel Graziottin

A Ucrânia, país do Leste Europeu, vem recentemente se contorcendo em manifestações em massa, chamas e barricadas de um país dividido por dois sentimentos nacionalistas e uma lógica geoestratégica econômica. Os “fantasmas da Guerra Fria”, os nacionalismos do século XX e a histórica disputa capitalista vêm assumindo contornos num Estado assolado pela atual crise econômica, porém – para o brilho dos olhos de outros atores –, possuidor de um atraente mercado consumidor.

Infelizmente, devido a nossa atual defasagem midiática, as informações satisfatórias e plausíveis sobre os motivos dos recentes protestos na Ucrânia são infimamente trazidos a nós, para não dizer quase nunca. E, desejar uma pequena análise de sua situação conjuntural e histórica, já é pedir de mais. Portanto, esse artigo se compromete em preencher parte dessa lacuna existente, esclarecendo alguns motivos do levante ucraniano – não apresentando, é claro, um panorama completo da situação do país –, realizando uma sucinta leitura histórica do país e os motivos estratégicos que arrastaram a Ucrânia na atual conjuntura político-econômico-social no tabuleiro internacional.

Manifestante anti-governo. Fonte desconhecida.

Queremos a União Europeia!

O epicentro do conflito que vem se desencadeando na Ucrânia é a rejeição do Primeiro Ministro Viktor Yanukovych a um acordo de integração da Ucrânia à União Europeia (UE) no ano passado, atrelado a um forte sentimento populacional de apatia a Rússia, que tenta integrar a Ucrânia a sua área de influência comercial. Devido a essa negativa do governo nessa proposta de integração externa, milhões de ucranianos saíram às ruas, desenhando grandes manifestações e palcos de resistência direta as forças policiais no horizonte; desenho esse que não se via desde a Revolução Laranja.[1] A principal figura é um forte movimento anti-governo que exige a integração com a União Europeia, apontando, inclusive, casos de corrupção do Governo Yanukovych.

O interessante desse desenho são as “cores” que vêm sendo utilizadas, como os nacionalismos ucranianos que se entrechocam em um importante momento histórico de escolha para o futuro do país. Entrechoque esse que obtêm dimensão visível quando, após a negativa do governo a integração europeia, milhões de pessoas vão a Kiev exigir à saída do Primeiro Ministro do governo, manobrando esse, em contrapartida, manifestantes pró-governistas e favoráveis à Rússia.

At the same time, from the east and south of the country, others arrived at Kiev's central station on Saturday morning in special trains arranged by the government to bring their own supporters from their heartlands to the capital, and show that not all of Ukraine supports the protests that have gripped the country in the weeks since the government pulled out of signing an association agreement with the EU. (WALKER, 2013, p. 2)

[Tradução: Ao mesmo tempo, do oeste e sul do país, outros chegaram na estação central de Kiev no sábado de manhã em trens especiais arranjados pelo governo para trazer os seus próprios apoiadores do interior à capital, e mostrar que não são todos os ucranianos que apóiam os protestos que atingiram o país nas semanas que o país recusou um acordo de associação com a UE]

Demonstrações pró-governamentais nas ruas de Kiev com gritos e slogans em apoio ao presidente. Foto: Marko Djurica/Reuters

Assim, o conflito ucraniano é adesão externa a União Europeia ou a área da influência comercial russa devido à fragilidade econômica que o país atravessa[2], oriundo do atual ciclo de crise do capitalismo. Tem que se destacar que o conflito ganhou maiores proporções com a forte repressão do governo a manifestantes pacíficos, causando a comoção nacional, em consequência, com a extraordinária resistência civil dos ucranianos, representada nas barricadas de Kiev e ferocidade contra os policiais.

O Duplo Nacionalismo e o Mercado Consumidor

A Ucrânia, assim como muitos países lestes-europeu, foi palco de domínio durante séculos de distintos impérios multiétnicos, como o Império Habsburgo, perpassando o Império Otomano, Império Russo até a União Soviética. É um Estado jovem, surgido no inicío do século XX e sendo, em decorrência, uma República Socialista da União Soviética até o seu desmoronamento. A população oriental, culturalmente, se identifica com a Rússia, contudo, a ocidental, se identifica com um sentimento de “nação europeia”, atemorizada pelo recente passado de domínio russo soviético. Assim, é visível que a Ucrânia, com o seu duplo nacionalismo – ou o complexo do oeste e leste –, vê-se divida numa conjuntura como essa, evocando sentimentos característicos do século passado.

Para os ocidentais, ter livre acesso a UE com a integração ao bloco é uma chance de fuga da vulnerabilidade econômica além de corresponder aos seus desejos, porém, para os orientais, os pró-europeus não passam de desordeiros que não querem trabalhar, resgatando ambos suas raízes históricas, ao saírem às ruas com tradicionais trajes ucranianos. Esse sentimento de nacionalismo, mostra-se ainda vivo nos dias de hoje, sendo a força propulsora que inflama milhões de ucranianos a lutar e resistir.

Dá para se ter uma ideia do sentimento de dupla nacionalidade da Ucrânia, através da divisão étnico-linguístico de sua população, conforme a imagem abaixo.

“A Divisão étnico-linguística”. Em azul: “Maioria que fala ucraniano”. Em vermelho: “Maioria que fala Russo”. Em preto: “Outras minorias étnicas”. Fonte: The Guardian. The Observer.

Paralelo a esse duplo nacionalismo, a União Europeia e a Rússia disputam a Ucrânia como aliada comercial pelo seu atraente mercado consumidor de 45 milhões de pessoas, em um momento histórico na qual a União Europeia, paulatinamente, se recupera de um ciclo recessivo e a Rússia rearticula geoestrategicamente o seu antigo campo soviético na Eurásia. Assim, o conflito ucraniano transcende as questões nacionalistas, em um cenário de disputa semelhante aos impérios de outrora. Em um sistema internacional multipolar, a (re) formulação de alianças regionais é primordial para se enfrentar o desenfreado capitalismo financeiro mundial e suas inúmeras instabilidades.

Recentemente, Moscou tem cortejado com maior desenvoltura a Ucrânia, oferecendo diminuição do preço do gás exportado ao país, a concessão de um generoso empréstimo e a compra de títulos da dívida pública Ucraniana, fazendo os olhos do Primeiro Ministro saltarem, enquanto que as barricadas permanecem sendo erguidas, destruídas e reerguidas nas ruas e praças de Kiev. Apesar do levante ucraniano nos últimos meses, tem-se averiguado no início desse ano uma diminuição do número de manifestantes, podendo ser uma fase de temporária redução dos protestos para tomar um novo fôlego, ou, a própria resignação dos ucranianos às decisões políticas tomadas.

Assim, conforme se verifica, a atual levante ucraniano vem sendo uma experiência entre o jogo de um duplo nacionalismo e um mercado consumidor em um momento de escolha de integração política externa, seja na União Europeia ou na área de influência comercial russa. Mais uma vez, como se verifica em séculos atrás, a Ucrânia parece estar predestinada, por seu espaço geoestratégico, a ser dominada por um “império” ou outro que se (re) estrutura nesse século XXI.

Referências

KARATNYCKY. Adrian. Ukraine's Orange Revolution. Foreign Affairs. Vol. 84, No. 2 (Mar.-Apr., 2005), pp. 35-52.

WALKER, Shaun. Ukraine: tale of two nations for country locked in struggle over whether to face east or west. The Guardian. 16 dez. 2013.

_______. Ukraine anti-government protest draws tens of thousands. The Guardian. 29 dez. 2013

_______. Ukraine protests: outrage as police attack Kiev barricades. The Guardian. 11 dez. 2013.

_______. Vladimir Putin offers Ukraine financial incentives to stick with Russia.  18 dez. 2013.

Notas

[1] Outro levante ucraniano ocorrido em 2004 contra as fraudes eleitorais, corrupção massiva e intimidações eleitorais, na disputa entre os candidatos ao Primeiro Ministério, Viktor Yushchenko and Viktor Yanukovych,  estando o governo favorecendo Viktor Yanukovych. A capital Kiev foi então, palco de resistência civil e grandes manifestações, até que a vitória eleitoral de Viktor Yushchenko foi considerada limpa para a população. (KARATNYCKY, 2005).

[2] Semelhante a outros países europeus, com dívidas públicas, falta de crédito e falta de liquidez orçamentária.

 

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