O que é o individualismo hoje? Qual seu papel?
11/12/2013 08:59
Gregório Grisa
(Publicado originalmente no Augere)
Está mais que "manjado" dizer que o individualismo é um valor cultural hegemônico do nosso tempo, dessa hipermodernidade (Gilles Lipovetsky), ou modernidade líquida (Zygmunt Bauman) que vivemos. Individualismo é palavra que pula das bocas de todos "esses esquerdistas que querem mudar o mundo criticando" pensará o leitor farto do discurso crítico. Esse "cansaço" do leitor desavisado não se deve ao crescente questionamento que o individualismo vem sofrendo, mas ao desconforto do leitor diante do desafio de compreender como esse valor se materializa nas relações humanas, nas decisões políticas e constitui nossas representações sociais. Explico-me.
O sufixo "ismo" vem do grego - ismós - e significa uma ideologia, um sistema a ser seguido, ou também, na área médica, quer dizer patologia, doença. No caso do individualismo que trato aqui, significa as duas coisas.
Braço do modo de produção capitalista, ente necessário para sua reprodução excludente, o individualismo de hoje já é uma deturpação do que o próprio iluminismo reivindicara com a noção de "indivíduo", ligada a ideia do "Homem" de direitos cuja individualidade e propriedade deveria ser respeitada. O individualismo tão pouco é um contraponto conservador a algum tipo de coletivismo, que seria um princípio mais humanista ou socialista, pois já não tem de competir com os valores do bloco comunista como fez em boa parte do século XX.
A versão neoliberal do individualismo tem como base a crença de que a distribuição dos recursos materiais e da estima social ocorre através das escolhas racionais e esforços dos indivíduos. Ou seja, crê que a sociedade é o conjunto de interesses e vontades individuais e devem "vencer" aqueles que melhor se adaptam ao seu funcionamento. A teoria da escolha racional ou a teoria do agente principal são algumas que sustentam o individualismo que vivemos do ponto de vista filosófico.
O individualismo como valor cumpre dois papéis fundamentais hoje:
1- Culpabilizar o indivíduo pelos seus fracassos. (Meritocracia levada as últimas consequências, parte do pressuposto que a sociedade precisa de vencedores e vencidos e que esse formato é o único possível.)
2 - Inviabilizar e dificultar concretamente a valorização de identidades coletivas. (Ideologia que que não tolera qualquer tentativa de organização de grupos sociais em torno de uma identidade ou de tema comum).
O individualismo produz pessoas que condenam a identificação regular de discriminações e desigualdades como o racismo, a homofobia e o machismo, acusam os agentes ou grupos que o fazem de criarem teorias conspiratórias, de coitadismo, de patrulha do politicamente correto. O individualismo produz pessoas que acham bobagem o dia da consciência negra, direitos de comunidades quilombolas, indígenas, ribeirinhos ou movimentos LGBT. Pessoas que acreditam realmente, por exemplo, que ser um povo miscigenação significa viver em democracia ou harmonia racial.
O individualismo como valor tem tal poder sim, inculca nas pessoas a ideia de que se vive uma livre e leal concorrência no palco da vida. Que todos que se esforçam conseguem "chegar lá", logo qualquer denúncia de elementos impossibilitadores do "sucesso" pautada em alguma dimensão coletiva ou identitária, não passa de "desculpa" ou "neurose exagerada" daqueles que não são capazes de "ser alguém na vida".
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