Os Farrapos no Cinema: Uma contra-análise da História Gaúcha

23/09/2012 22:19

Walter G. R. Lippold

Há poucos dias passamos pela comemoração da “revolução mais importante do mundo”, segundo propaganda da cerveja Polar. Exageros à parte, o 20 de setembro causa orgulho nos gaúchos: pessoas que nunca exerceram alguma lida no campo, vestem suas bombachas e xiripás. Tomam mate em suas cuias ornamentadas e a cidade  é tomada por um aroma de churrasco. As escolas promovem eventos ligados a “cultura gaúcha” e a sacralização das invencionices chegam ao seu momento de cristalização anual. Sabemos que toda tradição é inventada, mas a nossa é um bom exemplo de como se camufla e distorce a história em prol de mitos de fundação, heróis e fatos pomposos. As traições e erros fatais dos heróis são escondidos ou justificados, as derrotas são apagadas e as vozes que em coro desafiam a história oficial são caladas no limbo dos derrotados. Há ainda os derrotados dos derrotados. Assim foi a nossa Guerra dos Farrapos. Na construção dos mitos escondem-se alguns documentos inconvenientes, muitos deles da coleção mais conhecida de fontes sobre a Guerra dos Farrapos, a Coleção Varela[1].

Gosto muito da cultura gaucha que vai além de fronteiras, desde pequeno passava minhas férias na estância dos meus avós no Alegrete. No galpão, a beira do fogo ouvia os causos e a gaita através de homens como Volmeres, Seu Vinês e Seu Noé. Gostava de participar das lidas do campo e aquele cenário me marcou para o resto da vida, mesmo depois que me mudei para Porto Alegre. Mesmo tendo vivido na campanha e usado bombachas, botas, andar a cavalo aquilo era ao natural, nada forçado ou artificial, eu vivi aquilo realmente na minha infância. É diferente de eu me fantasiar de gaúcho para - em galpões artificiais - “reviver” a vida no campo. Esta é a diferença entre uma cultura viva popular como a nordestina e uma “cultura” mortificada em regras como o tradicionalismo gaúcho. Eu digo “cultura” pois se o conceito nasce de colere, cultivar, não posso chamar assim sem aspas um aparato social que visa petrificar aquilo que deve ser naturalmente criado e recriado. Não sou contra a cultura dos pampas, pelo contrário, me emociono ouvindo Jorge Cafrune cantando “La Pasto Verde”, meus vizinhos sempre se surpreendem que em meio de raps e sambas, as vezes se ouve a voz de Noel Guarany, Jayme Caetano Braun ou de Jorge Guedes e seus filhos Anahy e Karay. Existe a cultura gaucha e um aparato, uma máquina limitadora chamada tradicionalismo. O tradicionalismo é o Leito de Procusto da cultura gaucha de raiz. Neste lugar se mutila a história e a cultura do Rio Grande do Sul e da pampa em geral.

Lendo historiadores como o meu xará, Walter Spalding[2], em sua obra A Revolução Farroupilha: história popular [sic] do grande decênio, seguida das efemérides  principais de 1835-1845, fartamente documentadas”, vemos o quanto é possível tornar a história linear e tediosa. O livro já começa com uma linha incessante de nomes de presidentes e juntas que governaram a Província desde 1822. Mas o pior é que mesmo tendo acesso a documentos, a grande maioria dos historiadores que analisaram a Guerra dos Farrapos serviu a propósitos subrepitícios, muitos deles engajados na formatação de uma identidade nacional, extirpando ou amenizando o caráter platino da guerra defendido por Varela.  Já a questão do negro na Guerra dos Farrapos e no pós-guerra é um dos assuntos tabus na nossa historiografia, recentemente alguns pesquisadores como Tau Golin, Mário Maestri, Spencer Leitman, Paulo Moreira, Vinícius Pereira de Oliveira e Juremir Machado da Silva buscaram tocar fundo o dedo na pústula historiográfica rio-grandense: a invisibilidade, ou visibilidade submissa do negro na História do nosso Estado. A História regional da Infâmia  escrita por Juremir Machado da Silva traz uma análise bastante ampla da documentação e historiografia acerca do conflito. Não só na história como na literatura temos a emergência de vozes dissonantes no coro frenético do bairrismo monolítico de nosso Estado: dois grandes e premiados filmes de produção nativa buscam atacar mitos criando, como diria o tunisiano Albert Memmi, uma contramitologia. Para Marc Ferro[3] o cinema, o filme é uma “contra-análise da história”,  o que se confirma no nosso caso regional quando elencamos dois filmes importantes no cinema rio-grandense: Netto Perde sua Alma (2001) e Anahy de las Missiones  (1997), filmes que constroem uma contranarrativa - outra História, diferente da História Oficial. Cabe dizer que a Guerra dos Farrapos é um dos pontos mais debatidos na historiografia gaúcha, no entanto, existem muitas "matrizes" diferentes: os que dizem que era separatista e platina e os que afirmam a brasilidade da Guerra; os que dizem que os farrapos traíram os negros e os que defendem a honra dos farrapos; os que afirma terem sido lanceiros os mortos em Porongos, em 1844, e os que dizem que foi a infantaria desarmada. Veremos o que o cinema tem a nos dizer sobre isso!

Netto perde sua Alma

Netto Perde Sua Alma, como o próprio título já indica, é o caminho de um herói que olha pro passado e vê suas feridas abertas e seus velhos fantasmas cobrando o erros de outrora. O livro de Tabajara Ruas já possuia uma narrativa tipicamente cinematográfica rompendo com a linearidade de romances históricos tradicionais, utilizando-se do conceito de polifonia baseado em Bakhtin. A literatura é uma fonte histórica que muitas vezes é mais “fiel” a uma realidade, do que a própria historiografia acerca daquele contexto. Diz-se que os escritores por estarem escrevendo ficção, acabam por libertar-se de diversos grilhões ideológicos que podem embaçar a visão histórica de uma realidade social em seu tempo, e assim, demostram aspectos desta realidade que de um modo ou de outro escaparam da análise historiográfica . Assim também o é com os filmes, como afirma Marc Ferro. As perspectivas críticas ao positivismo, que busca o “fato-em-si” como ele realmente ocorreu, desprezaram veementemente esta busca canônica de uma objetividade linear e mecaniscista, relativizando radicalmente a verdade histórica como narrativa. Assim a linha entre a História e a literatura seria tênue[4].

Premiado no Festival de Gramado com quatro Kikitos de Ouro, nas categorias de melhor filme - júri popular, melhor montagem, melhor trilha sonora e prêmio especial do júri e no Festival de Brasília (melhor ator) o filme é uma adaptação do livro de Tabajara Ruas. Ambos utilizam o flashback calcado no fluxo de memórias fragmentadas que se interconectam através do diálogo de Netto (Werner Schünemman) moribundo com o Sargento Caldeira[5] ,  já no livro havia este recurso: a febre aumenta e com ela as lembranças e alucinações. De repente ocorre a aparição do Sargento Caldeira que “tem o passo leve”. A presença de Caldeira é uma alucinação ou realmente uma materialização do seu espírito? Fica esta dúvida no ar.  No meio disso Netto relembra dos principais momentos de sua vida e a todo momento compara a guerra por ideias (Farrapos: 1835-1845) com a guerra suja onde ele está (Paraguay: 1864-1870). 

Os fantasmas dos erros do passado são as materializações nesta jornada que levará ao Rio Aqueronte, travessia que Netto terá que fazer, não antes de repensar sua vida. E nesta verdadeira desconstrução do mito do herói Caldeira e Milonga são a representação dos soldados negros traídos, principalmente o segundo que se sentia pessoalmente traído pelo General Netto que prometeu que a escravidão iria acabar após a guerra. Já no início do filme há uma menção a defesa da república e da abolição pelos farrapos, coisa que na história não foi tão simples. Os líderes farrapos não aboliram a escravidão após a fundação da República. No filme o Sargento Caldeira afirma ter vindo de um quilombo para lutar do lado dos Farrapos, mas segundo um artigo do meu amigo[6], o historiador Vínicius de Oliveira[7]:

A arregimentação se dava de várias formas: através da solicitação de escravos a senhores simpáticos à causa farrapa, pela captura forçada de negros pertencentes a proprietários leais ao Império e via sedução com a promessa de alforria, o que acabava por ocasionar o engajamento voluntário de cativos que fugiam de seus senhores,vislumbrando no exército farroupilha uma possibilidade de liberdade.Ou, ainda, poderiam adentrar as tropas em substituição de indivíduo livre convocado, o qual podia oferecer um escravo com carta de alforria para lutar em seu lugar.

Junto com o título do filme vemos o sinistro prédio do Hospital Psiquiátrico São Pedro, que em Netto Perde sua Alma representa o Hospital de Corrientes. O ano é de 1866, Netto foi ferido na Guerra do Paraguai, logo após chegar no hospital, suas roupas são cortadas e há uma alusão de Netto a Cristo. O Genetal não se agrada do médico que tem mãos que “fedem a mijo” principalmente depois que o Dr. Philip Blood (no livro Dr. Phillip Fointainebleux) amputa as duas pernas do Capitão De Los Santos em uma cena de cirurgia de arrepiar. Diga-se de passagem, a ambientação do filme é ótima. Há no ar uma difusa crítica ao discurso médico provavelmente advinda da leitura de pós-estruturalistas que se dedicaram a analisar o poder sobre o corpo no campo da medicina: “- A carne se desfaz por muito pouco.” diz o médico num diálogo com o General Netto.

A questão do negro na Guerra dos Farrapos é o grande drama da narrativa, dentro do triângulo Netto – Milonga – Caldeira. Pouco antes de ser admitido no Corpo de Lanceiros Negros ocorre o seguinte diálogo entre Netto, Teixeira Nunes e Milonga que responde ao Capitão Gavião que mesmo sendo bem tratado na fazenda: “Lá eu sou um escravo, capitão.”- afirma Milonga.  “Tu é muito novo para ser soldado, Milonga.” - diz Teixeira Nunes. - “Não pra ser escravo capitão.” Um tema africano de tambor surge no momento que Milonga aparece em cena. Há uma certa dose da ideologia da democracia pampeana, onde o cativo era bem tratado pelos senhores. Não é o que nos traz a historiografia atual citada ao longo deste artigo. “Quando esta guerra acabar Milonga, vosmecê será um homem livre!” Depois Milonga se refere a Netto, o "libertador de escravos". A promessa de Netto será quebrada no fim da guerra e aqui está o cerne do debate historiográfico entre a matriz “surpresa” e a matriz “traição” como afirmam Oliveira e Carvalho[8]

Com uma fotografia atrativa e uma qualidade superior de montagem  as cenas que mais se destacam são as batalhas campais. As cenas de batalhas estão bem montadas, o cinema brasileiro evoluiu muito neste tipo de cena. Canhões e garruchas e fios de sabre dão o som da cena da Batalha do Seival. No fim o dramático momento em que um lanceiro negro mata um soldado brasileiro desarmado, enfiado sua lança nas costas no corneteiro que agoniza lentamente no campo embarrado. Outra cena que se destaca é a do “Padre” e seus párias sociais: Teixeira Nunes e Netto são cercados por um bando formado por platinos, mestiços e indígenas. O Padre e seu bando de mestiços e loucos, que falam portunhol. A atuação do Padre é de primeira.

Há uma dose de exotismo na cena da tropa negra, já no início uma mulher cospe fogo e então ouvimos e vemos os tambores, um tema swingado com uma letra exaltando a guerra por igualdade. Há então o ritual de entrega da farda vermelha dos lanceiros negros ao Milonga. No acampamento branco as pessoas tomam mate, fumam palheiros e conversam. Este é o spiritus rector gaúcho: de dia degolando e espetando os inimigos na batalha, de noite tocando uma milonga acompanha de palheiro e mate. No acampamento negro todos dançam sem parar. Marc Ferro nos ensina que o diretor, o produtor, enfim a equipe que fez o filme, muitas vezes trazem a tona o inconsciente coletivo, que para Fanon é produto da cultura. Mesmo criticando a história oficial o filme reproduz alguns estereótipos conhecidos nos filmes, novelas e séries brasileiras: assim como nas novelas da Globo o negro não possui nome próprio no filme “Milonga”, “Palometa”, “Quero-Quero” , só o Sargento Caldeira tem este mérito. Sabemos que os africanos eram rebatizados com nomes como João do Congo, talvez este resquício escravista de chamar o negro apenas por apelidos continue nas narrativas histórico-literárias brasileiras.

No momento da proclamação da República Rio Grandense há um tema baseado no controverso Hino do Estado.  Na cena posterior ocorre o vortex do filme, a bandeira rio-grandense hasteada heroicamente após a Batalha do Seival, torna-se velha e rasgada. No fim da sequência das bandeiras temos o impacto da cena: o outrora jovem Milonga agora é um homem destruído pela guerra, aleijado e frustrado, com dentes cariados e cicatrizes de queimaduras no rosto, um ódio flamejante faísca de seu olhar. O ódio e a frustração pelas promessas ilusórias dos farrapos. Os soldados negros desertores  debatem sobre fugir para as Encantadas.  Caldeira defende a união com os brancos liberais, mas a maioria dos soldados negros não quer saber desta aliança. Palometa desafia Caldeira: -“Vosmecê tá falando como um branco, sargento.”  Palometa morre, agonizando de febre, ele só queria seu ranchinho, mas nada ganhou, assim como o negro no Rio Grande do Sul. Palometa morre no desgosto de ter trabalhado a vida toda e nada conseguido em termos materiais.

A tese do filme afirma que os farrapos queriam a república e também a abolição dos cativos, mas isto não se efetivou, pois perderam a guerra. Já o livro de Juremir Machado da Silva, História Regional da Infâmia afirma-se que no fundo os líderes farrapos não eram abolicionistas, tanto que mantiveram seus cativos, durante e depois da guerra, inclusive vendendo escravizados para o Uruguai no intuito de fazer a manutenção da guerra.  Netto é absolvido pelo Padre, mas Milonga vai cobrar a sua dívida, tenta matar Netto, que naquele momento esbraveja que os lanceiros negros foram traídos. Antes de tentar assassinar Netto ocorre o diálogo que talvez seja o mais importante “a guerra acabou mas eu continuo escravo”. “vosmecê mentiu pra nós” “eu não menti eu perdi a guerra”. Mas Caldeira mata Milonga protegendo o General Netto. Tudo isso na frente da Igreja. Caldeira sai sem dizer nada! No livro é diferente, após matar Milonga ele diz: “- Milonga, negrinho burro, matar um general não é mais um fato político. (p.139). Como historiador tenho que perguntar, o abolicionismo não fora efetivado pelos farrapos porque perderam a guerra, ou o abolicionismo não era o projeto original dos farrapos? Como afirmar Juremir Machado da Silva em seu História Regional da Infâmia:

“[...]O Império, obviamente, era autoritário, despótico e cruel, o que se confirmava na manutenção do escravismo. Só que os farroupilhas, nunca é demais repetir, tampouco aboliram a escravidão. Também nunca é demais repetir, tampouco aboliram a escravidão. Também nunca é demais repetir que o projeto da Constituição da República Rio-Grandense estabelecia (artigo 6º, parágrafo 1º) como cidadãos ‘todos os homens livres nascidos no terriotório da República’. Se aparantemente não discriminava raça, previa homens não livres, ou seja, escravos. Por conincidência histórica, não mais do que isso, os escravos eram negros. Moacyr Flores destaca com acerto que a República farroupilha, sendo liberal, não podia abolir a escravidão para não interferir no sagrado direito de propriedade.[...]” p.96

O fantasma de Milonga atormenta Netto, é o sentimento de culpa do general farrapo pelo destino do negro na guerra, esta cena expressa a culpa enrustida na cultura gaúcha que apesar de absorver a cultura afro-gaúcha, ocultou-a segregando-a da “cultura” tradicionalista. Após o fim da Guerra dos Farrapos Netto vai para o Uruguay e com eles muitos soldados negros, a explicação de Netto para ter numerosos “escravos” no Uruguai é simples “eles vieram comigo porque quiseram”.

Depois da leitura de História regional da Infâmia, que refiz ao ver o filme para este artigo, podemos defender que: 1) Os farrapos não aboliram a escravidão e venderam cativos para financiar a guerra; 2) Os massacrados em Porongos não foram os lanceiros, o Movimento Tradicionalista por um lado, e o Movimento Negro por outro defendem a tese dos lanceiros mortos em Porongos, o primeiro para purgar a culpa da traição e dar mais romantismo ao combate, já que os lanceiros resistiram bravamente; o segundo para construir uma identidade afro-gaúcha; 3) A maioria dos mortos era dos Corpos de Infantaria e Caçadores, onde a maioria era negra, mas possuindo também indígenas, mestiços e brancos; 4) Canabarro retirou o cartuchame da infantaria que ficou apenas com armas brancas, mesmo avisado que o Moringue estava por perto; 5) Mesmo com Bento Gonçalves e Netto defendendo que os soldados negros deviam ser libertados, estes foram entregues ao Império e provavelmente tornaram-se propriedade do Estado Brasileiro, sendo empregados em fazendas imperiais e nas fileiras do exército; 6) As relações dos líderes farrapos com caudilhos do Prata como Lavalleja e Rivera são ocultadas pelos reprodutores de mitos.

Na cena final do filme Caldeira pede permissão ao General Netto para matar Ramirez, por ter visto este cometer crimes de guerra no Paraguai (genocídeo, assassinato em massa de crianças e mulheres, uso de corpos com tifo para contaminar populações ribeirinhas). Caldeira e Netto lavam a alma do brasileiro matando Ramirez. A culpa brasileira na tríplice Aliança purgada com o sacrifício de Ramirez. Após degolar o Dr. Blood - que no livro possui um nome diferente, é o Dr. Fointainebleux - Caldeira com a faca na mão diz, “este não carneia mais niguém”. A imagem do negro degolador vem com toda força, estereótipo típico do Rio Grande do Sul.

No fim Netto é levado por Caldeira ao Caronte para a travessia final no simbólico Rio Aqueronte afluente do Estige que levam ao submundo de Hades. As referências à mitologia grega são constantes, o próprio Netto discursa “[...]se para alguns cabe o destino de Atenas, para outros coube o destino de Esparta[...]” “Mas bah gostei do floreio general” diz Caldeira. Achando que a barca é o plano de fuga do Sargento Caldeira, Netto sente o peso de todos os que matou e Caldeira confessa que o único que teve pena de matar foi Milonga. A cena final é impactante, quando Netto dá-se conta que Caldeira morreu na Batalha de Tuiuti com um lançaço no peito e que a travessia que o espera é sobrenatural.

Anahy de las Missiones

Anahy de las Missiones (1997) constrói outra visão sobre o conflito do “decênio glorioso”. Não tão glorioso como mostra o filme dirigido por Sérgio Silva e com participação de Tabajara Ruas que colaborou no roteiro. Aliás, Araci Esteves, a premiada atriz que protagonizou como Anahy, também fez uma aparição em Netto Perde Sua Alma, como a Sra. Guimarães armada com um trabuco em sua estância.

Anahy e seus filhos catam pertences de mortos, o pós-batalha não é tão garboso e heróico como o enfrentamento em si. Cadáveres amontoados em meio a bruma da artilharia recente, um homens agonizante pede - com o olhar - misericordiosamente um golpe que dê fim a sua dor. Anahy é a mulher forte da pampa, não como as limpinhas e cheirosas da mini-série pausteurizada “A casa das sete mulheres”. Sem tomar parte no conflito entre caramurus e farroupilhas, Anahy,  seus filhos e uma agregada vivem do sinistro botim dos pertences de mortos em batalha. A questão da mulher aparece com toda força, não a prenda reprimida sexualmente dentro do simbólico vestido fechado, uma espécie de burca do tradicionalismo forjado. O poder do homem sobre o corpo da mulher dentro de uma sociedade machista dá a tônica desde ótimo filme do cinema nacional: Anahy diz que desde pequena os homens "bufam" em cima dela. A filha de Anahy se esconde com trapos mentindo que é doente a mando da mãe para despistar os olhares de soldados e demais “paisanos”.  Sem bois para puxar a canga, o filho coxo de Anahy  é quem puxa. Quando acham dois bois para puxar seu carro, os farrapos expropriam para abater o gado e alimentar tropas. Heróis não expropriam gado de gente miserável. Anahy e seus filhos são os verdadeiros “gaúchos a pé”.

Algumas cenas se destacaram quando revi este filme: na cena em que Solano é morto, o cavaleiro farrapo era o grande amigo do meu pai, o ator Marcos Barreto. Ano passado ele faleceu, fiquei muito feliz em vê-lo vivo na tela do filme Anahy de Las Missiones, eu o estimava muito.

A cenografia e o figurino de Anahy de las Misiones mereceram um acurado levantamento histórico. Foram produzidos uniformes militares, trajes civis, carroças, armamentos, utensílios, num trabalho de reconstituição de uma época cujas referências são escassas. Talvez o maior esforço nesse sentido tenha sido a construção da réplica do barco Seival, puxado por terra pelos homens de Garibaldi e 40 juntas de bois em junho de 1838. Seguindo as dimensões da embarcação original, o caso dessa réplica de 16 metros de comprimento por 4 de altura (sem o mastro).[9]

A cena do barco Seival tem um pouco da cena do barco em Fitzcarraldo do diretor Werner Herzog. A travessia do impossível ao olhos do espectador. O filme completo Anahy de las Missiones é raro de se achar nas locadoras, mas felizmente algum herói anônimo postou ele no youtube[10]

Estes filmes são uma grande contribuição na contra-análise da história do Rio Grande do Sul e acompanham um momento de reflexão profunda pela historiografia e literatura gaúchas: podem e devem serem usados nas salas de aula, principalmente em EJA. Mas para isso é necessário educar não só o olhar do estudante na sala de aula, mas do estudante na formação de professores, futuro educador. Sem uma formação de professores inicial e continuada dentro do campo da estética, da análise da imagem, o uso do filme na sala de aula limita-se ao eventismo, momento de distração em oposição a aula. A releitura crítica da história da Guerra dos Farrapos, hoje, vai além do feudo fechado da historiografia, ousa chegar às massas através das telas.

Notas

[1]  O milhares de documentos da Coleção Varela foram analisados em SILVA, Juremir Machado da. História Regional da Infâmia. O destino dos negros farrapos e outras iniqüidades brasileiras (ou como se produzem os imaginários).  2ª Ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 2010. Apesar de conclamar o relativismo da pós-modernidade, evocando Lyotard e o relativismo da verdade histórica - o livro possui este grade mérito da ampla revisão da documentação e historiografia sobre a Guerra dos Farrapos. “O que prova que uma prova é prova?”  Respondemos com outra citação, também famosa: "A praxis é o critério da verdade".

[2] SPALDING, Walter.  A Revolução Farroupilha: história popular  do grande decênio, seguida das efemérides  principais de 1835-1845, fartamente documentadas. 2ª Ed. São Paulo: Ed. Nacional, 1980.

[3] FERRO, Marc. O Filme: Uma contra-análise  da sociedade?. LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre. História: Novos Objetos. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.

[4] Sobre a obra de Tabajara Ruas e os encontros entre literatura e História no livro “Netto perde sua Alma” indicamos este artigo VEDOIN, Gilson. O Discurso da História nas malhas da Ficção: Netto Perde Sua Alma e o novo conceito de romance histórico. In:

https://cascavel.ufsm.br/revistas/ojs2.2.2/index.php/sociaisehumanas/article/view/1221/728

[5] Representado pelo grande ator Sirmar Antunes, também o sargento em O dia em que Dorival encarou a guarda. Um dia eu estava no ônibus e ele estava do meu lado, quis elogiar o seu trabalho mas ele desceu na próxima parada.

[6]  Fui colega do historiador Vinícius Pereira de Oliveira na época em que fazíamos parte do Centro de Pesquisa Histórica de Porto Alegre, em 2000. Atuávamos no Projeto Memória dos Bairros. Um dia comentei com o Vinicius que eu tinha uma monografia sobre escravismo no Rio Grande do Sul para fazer, no outro dia ele chegou com uma pilha com mais de 20 livros sobre o assunto. “Te diverte!” disse ele. Com certeza foi uma das pessoas que me incentivou a estudar racismo e educação

[7] OLIVEIRA, Vinicius Pereira de; CARVALHO, Daniela Vallandro de. Os lanceiros Francisco Cabinda, João aleijado, preto Antonio e outros personagens da Guerra dos Farrapos. RS Negro: cartografias sobre a produção doconhecimento / organizadores Gilberto Ferreira da Silva, JoséAntônio dos Santos. – Dados eletrônicos. – Porto Alegre :EDIPUCRS, 2009.  

[8] Ibidem.

[9]  COHEN, Roberto. Anahy de las Missiones. Disponível em: https://www.paginadogaucho.com.br/cine/anahy.htm

[10] Anahy de las Missiones, 1997, filme completo https://youtu.be/0uKvD_VKa0w

 

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