Símbolos de submissão ou história dos povos?

01/08/2013 15:16

Marcos Belmonte

“(...) e aí foi que ele falou que seria muito bom se a história do Brasil pudesse ser escrita, não do ponto de vista dos seus diligentes, dos governantes, mas do ponto de vista dos governados, dos pobres, dos desfavorecidos. Um Brasil olhado e fotografado, se é que pode-se dizer “fotografado”, de baixo para cima, e de dentro para fora. (...) seria uma beleza. Eu também acho.” [1]

As pirâmides do Antigo Egito foram construídas mediante o esforço, suor, sangue e lágrimas de milhares de escravos; assim aconteceu igualmente com os Zigurats da Mesopotâmia; bem como os templos de Ishtar, de Perséphone, as pólis gregas; assim, também foi com as grandes obras de Dário, o rei persa, de Xerxes, as catedrais de Constantinopla, as pirâmides e as cidades Maias, Astecas e Incas; as grandes obras do império romano, o império helenista de Alexandre; um escravismo ideológico também ergueu seus símbolos, como as grandes catedrais e igrejas góticas e cristãs, as cidades da renascença... Grandes construções (robustas ou simbólicas) foram construídas sob uma espécie de escravismo e dominação e, contam a história de alguma sociedade ou povo. Podem ser considerados símbolos da submissão de uns sobre outros, mas não deixam de ser a história percorrida por determinados seres humanos em seus círculos de vivência.

Se viermos para o Brasil veremos o nosso mundialmente famoso e belo Barroco das Minas Gerais, sabidamente erguido dentro de um sistema ideológico e impositivo extremamente espoliador e escravocrata de europeus sobre brasileiros – a exploração fora agravada pela condição do Brasil ser, nesse contexto, a única possessão colonial de Portugal -; se nos voltarmos para o nosso estado, veremos a anedótica “revolução (sic) farroupilha” e o tradicionalismo erigidos sob uma ideologia burguesa e escravista, para uma sociedade sectária, machista e racista de pouca memória, recheada e adorada por suas peças de alteridade inferior, e de parco conhecimento - ou de degeneração ocular aguda – sob sua antiga condição submissa. Falta de consciência dentro de uma realidade construída por conceitos dos dominadores. Falta a alteridade de Dussel e um pouco de Mário de Andrade nos brasileiros.  

Uma consciência participante (...) Contra todos os importadores da consciência enlatada. A existência palpável da vida (...) Queremos a revolução caraíba. Maior que a revolução francesa. A unificação de todas as revoltas eficazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem[2].

Alguns exemplos da atualidade tomaram outras atitudes com relação à certos símbolos diferentes da sua atual ideologia, atitudes, em geral, de destruição. Os budas milenares foram destruídos por militantes do talibã – que por um prisma religioso ortodoxo, não toleram símbolos religiosos e/ou ideológicos -; a estátua de Saddan Russein fora derrubada de uma Praça do Iraque, altamente comemorada pelos EUA – antigo amigo e apoiador do ditador - os símbolos nazistas de Hitler foram obliterados da história “física” alemã. Outros símbolos são apropriados pela ideologia dominante: como a guerreira Boudicca ao lado do parlamento inglês; ou o samurai perto do palácio imperial japonês; ou a exaltação de Martin Luther king pela elite nos EUA; de Zumbi dos Palmares pelo status quod no Brasil e etc. A modernidade e seu modus operanti com a simbologia, tornando-a vazia ou corrompida num opus operatus tendencioso.

Todas as construções sociais executadas pela humanidade trazem consigo bem mais do que o que seus limites físicos cercam. Quando estamos diante de arquétipos ideológicos culturais, estamos cara a cara com a história de um povo, sociedade, nação e etc. O que precisamos fazer é colocá-los dentro de um processo crítico ampliado – como numa iconologia panofskiniana  - para que, esse, “fale”, e não acabe numa espécie de impacto semiológico restrito, ou como um tímido ou amordaçado arauto do passado. Os símbolos e as imagens contam histórias. E devemos ser humildes perante esses, pois, eles ainda continuarão ali, falando do passado para o hoje e ao futuro, enquanto os observadores sucumbirão ao próprio tempo[3]. A América do Sul está repleta de simbologias que estão “mais vivas” dentro de territórios nacionais específicos e outras de abrangências que ultrapassam as fronteiras nacionais. Um exemplo desse segundo é o próprio nome de uma competição de futebol, a Taça Libertadores da América. Troféu, esse, desejado por clubes de futebol da América sulista, difundido e aclamado pelas grandes mídias, exposto nas televisões de quase a totalidade das casas brasileiras e das nações coirmãs. A luta desses personagens, em evidência, Simon Bolívar, José San Martin, Bernardo O’Higgins e Manoel Belgrano, era contra a dominação dos colonialistas ibéricos e europeus. Um desses europeus invasores na história da América latina está causando certo alarde na Argentina.

Durante o programa Repórter Brasil, do canal TVE, no dia 4 de julho de 2013, foi mostrado uma reportagem sobre uma atuação “política” da nossa coirmã latina. Na Argentina, Cristina Kirchner tomou outra decisão que não foi bem recebida pela oposição. Ela resolveu retirar das proximidades da Casa Rosada uma estátua de Cristóvão Colombo – presente do governo italiano – e planeja colocar em seu lugar a de uma mulher mestiça boliviana que lutou contra os invasores colonialistas – e pela independência da Argentina – uma estátua de Juana Azurduy[4], colocando o Cristovão Colombo para uma periferia da capital. Hugo Chávez também se envolvera numa situação similar:

O presidente da Venezuela, Hugo Chávez, aplaudiu ontem a remoção de uma estátua centenária do navegante Cristóvão Colombo (1437-1506), descobridor das Américas, a quem o mandatário venezuelano qualificou no passado como 'o chefe do maior genocídio do qual se tem lembrança na história'. A estátua de Colombo em Caracas tinha lugar de destaque no agora inseguro parque de El Calvario, em uma colina próxima ao palácio presidencial. 'É preciso aplaudir a prefeitura por essa decisão. Cristovão Colombo foi o chefe da invasão que produziu o genocídio', disse Chávez em discurso transmitido pela televisão estatal da Venezuela. A estátua, instalada no parque em 1898, foi removida sob ordens do prefeito oficialista Jorge Rodríguez, como parte de uma reforma do deteriorado parque. Chávez sugeriu que 'ali onde ficava Colombo, deveriam colocar um índio ou uma índia, assinalando o rumo da libertação dos povos, o rumo do socialismo'[5].

 

Juana Azurduy

A oposição faz uma vigília na frente da Casa Rosada para impedir a retirada de Cólon do local. Um advogado dos imigrantes italianos estava com um documento que, segundo ele, dizia que a presidente não poderia tirar Cristóvão da localidade. Uma jurista do governo dizia que “não tem cabimento termos que ficar aqui para proteger nossos símbolos”. Outro político disse que é útil a discussão. Há descontentamento, revolta e certeza em jogo. A oposição de Cristina – onde o prefeito é filiado – se manifestara de maneira rançosa, como de costume – e a mídia golpista e cooptada brasileira reproduziu:

"Cristina quer retirar a estátua por teimosia", critica o secretário de Espaço Público portenho, Diego Santilli, que acusa o governo de se apropriar em 2007 da Praça Colón (Colombo, em espanhol), onde está a estátua do navegante. Naquele ano a prefeitura permitiu que o governo construísse uma grade ao redor da praça, por segurança noturna. Mas o governo transformou a praça em um jardim dos fundos da Casa Rosada, sob a janela do escritório de Cristina. "Ela acha que todas as coisas são dela!", reclama Santilli.[6]

A comunidade italiana argentina também se manifestara, a oposição continuara e acirrara sua posição, e nossa mídia de mentira reproduziu:

A estátua de Colombo foi doada à Argentina pela comunidade italiana em 1910, em agradecimento pela acolhida aos imigrantes. Na época, o país celebrava o centenário do início do processo de independência. "Não entendemos porque o governo Kirchner não nos consultou sobre a transferência", lamentou um representante da comunidade italiana em Buenos Aires. A prefeitura, governada por Macri, rival político de Cristina, ameaça denunciar a presidente Cristina por "roubo". "Se deixarmos isso ocorrer, na próxima nos levam o Obelisco", disse ontem o chefe de gabinete da prefeitura, Horacio Rodríguez Larreta, referindo-se ao principal monumento da cidade.[7]

 

Interessante a declaração da representante da comunidade italiana, querendo ser “consultada” sobre a retirada de Cólon da Praça, bem como, a hilariante colocação da oposição de prática de “roubo” pela presidente. O ano da doação da estátua pelos imigrantes italianos - marcado pela oposição como um “obrigado” por nos estabelecer em seu país – marca, não de maneira precisa, um marco da imigração europeia para Argentina. Mas como essa data não é “uma coisa em si”, isolada no tempo-espaço, ela está dentro de um contexto com muito mais contradições do que aparenta. A partir de 1870, com a unificação da Itália e da Alemanha como Estados Nação modernos, os mesmos, precisavam equilibrar a quantidade de suas populações para não acarretar em maiores entraves políticos e econômicos internos, bem como, no caso alemão, manter uma rede internacional alemã onde se pretendia exercer um poder político. Isso tudo dentro de um processo de fim do tráfico negreiro, Congresso de Berlin e estando o capitalismo às portas de sua nova fase, o Imperialismo. O ano do “presente de italiano” marca outro fato também. Completava-se 40 anos do projeto argentino que pretendia “europeizar” a Argentina, onde, tiveram como ação principal, mandar todas as populações nativas para o extremo sul, para a Patagônia, uma região até hoje de difícil vivência, privando essas populações de seus locais de história e direito. Os vinte anos posteriores a doação da estátua marcariam o início da “década perdida” ou “década da vergonha” onde, outro europeu, a Inglaterra, submeteu a Argentina à tratados econômicos que levara as populações hermanas quase ao caos, mas suas elites nem tanto. A mão de obra europeia era necessária para a América Latina no início do século XX para a nova fase capitalista – isso em um prisma elitista e eurocêntrico – mas com o estabelecimento dessas sociedades em solo sul-americano não trouxera só as benesses apontadas e cantadas pelas elites e pela mídia asquerosa; as populações nativas, africanas, e despossuídas em geral, quase sempre – para não dizer “sempre” – sofreram e suportaram o ônus desse movimento.     

A retirada de um símbolo europeu para colocar em seu lugar um símbolo sul-americano, não é só uma rusga política com a oposição direitista, tampouco uma ação para gerar um mau estar com a comunidade italiana na argentina; é, acima de tudo, uma visão de mundo rumo à um novo mundo. Esse anseio aparece no início do século XX com o movimento que chamam o “Espírito Americano”; a mesma visão figura nos murais de Orozco e Rivera; o mesmo ímpeto está no movimento antropofágico da Semana de Arte Moderna de 1922 e, consta nas palavras dos “redescobridores” do Brasil. Sérgio Buarque de Holanda queria a voz dos espoliados contando a história de seu país, a visão dos desfavorecidos. Sua procura por essa voz que contaria a visão dos pobres e trabalhadores o deixara feliz quando na inauguração, da sua então esperança, o Partido dos Trabalhadores[8]. Juana Azurduy tem uma bela história de luta[9]. Ela não está só nos discursos de Cristina Kirchner – do partido peronista – mas na doce e revolucionária voz de Mercedes Sosa[10] – uma peronista -. O fato de querer colocar a estátua dessa mulher reflete dois pontos: Primeiro, é o estabelecimento de uma lógica que rompe com a sociedade machista, que legavam à mulher o espaço do lar e a consciência nada politizada[11] e; segundo, coloca como imagem de sua história uma mulher mestiça e nativa, que lutou contra a dominação exógena europeia. É um posicionamento profundamente ideológico que sobrepõe qualquer suposição rançosa elitista. Quando estamos falando do clã Kirchner, as colocações da mídia são sempre regadas com o desprezo que nascera já na época de Perón e que deságua no projeto de regulação da mídia argentina pela família inimiga do porta-voz do status quod.

A grande mídia argentina encontra grande respaldo e amizade na grande mídia brasileira. Basta repararmos na cogitação das ruas, dos movimentos sociais, de determinados partidos políticos e de setores mais progressistas da sociedade, sobre o fim da propriedade cruzada, bem como com a criação de um órgão regulador midiático, e a real democratização da mídia nacional, ressaltando as regionalidades, para vermos o ataque epilético dos grandes conglomerados midiáticos contra tais proposições. Acabam por defender suas posições usando os absurdos conceitos forjados em antros como: The Heritage Foundation[12] e a Escola de Chicago. Basta, também, olharmos para as ações de governos, que não apadrinhados e fantoches das mesmas mídias cooptadas, que pretenderem tocar em pontos como a reforma agrária, taxação dos mais ricos, distribuição de renda e investimentos em políticas sociais, para ouvirmos nas televisões e lermos nos jornais e revistas o ataque frontal do arauto cooptado contra tal governo, exagerando na manipulação dos fatos, contrainformação, ocultação e corrupção da realidade. Os grandes oligopólios midiáticos subservientes ao status quod formam uma espécie de irmandade que possui um único mandamento: Perpetuar dos direitos e privilégios de poucos em detrimento de muitos. Esse elemento aglomerante que une covis como El Clarín e a Folha de São Paulo, por exemplo.

Esses confrontos de interesses são a tônica da constituição – e reconstituição – dos estados da América do Sul. Esses movimentos das sociedades, no decorrer de sua história, acabam erguendo imagens e símbolos que se, devidamente questionados, contam muito sobre as mesmas. Contam sobre vitórias e derrotas, sorrisos e lágrimas, alianças e confrontos, subserviência e autonomia, aceitação e reação. As imagens de Cristóvão Colombo e Juana Azurduy contam versões diferentes da história dos povos da América do Sul, mais especificamente, no caso em questão, da Argentina, claro, dependendo do olhar que se lança para os mesmos. O fato é que cada um representa um posicionamento ideológico. Os dois são importantes na atual constituição da argentina, para o bem ou para o mau. Retirar um para colocar outro, ou deixar as coisas como estão, será uma decisão do estado soberano argentino. O que temos certeza é que, o modo como vermos o desenrolar desse caso, demonstraria se deixaríamos Colombo ou colocaríamos Juana.    

Notas

[1]Trecho do depoimento de Maria Amélia (dona Memélia) esposa de Sérgio Buarque de Holanda, que falava sobre o trabalho e o pensamento do marido. Retirado do documentário Raízes do Brasil – Uma Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda.

[2] O Manifesto Antropofágico. Mário de Andrade. 1928

[3] PANOFSKI, Erwin. Significado nas Artes Visuais. Editora perspectiva: São Paulo, 2002

[4] Essa estátua teria um custo de um milhão de dólares, que seriam doados por Evo Morales, presidente da Bolívia. Em https://www.estadao.com.br/noticias/impresso,cristovao-colombo-o-novo-inimigo-de-cristina-kirchner-,1037990,0.htm  Acesso em 5 de julho de 2013

[7] Ibid – grifo nosso

[8]Raízes do Brasil – Uma Cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda

[11]Trabalhos de intelectuais argentinos fazem essa comparação de atitudes em outra instância. Existe a comparação entre Evita Perón – a Mulher guerreira, de posições firmes, com seu espaço de atuação nas ruas da cidade fazendo política e lutando em favor dos pobres, bastante politizada - que tem como imediata oposição a tediosa Jaqueline Kennedy - uma mulher que mais parecia uma boneca de cera, legada ao lar e o cuidado com os filhos, um bibelô que andava do lado do marido e, rigorosamente, nada politizada.

[12] A fundação Heritage foi fundada em 1972, com a ajuda financeira de 250 mil dólares do rico industrial Joseph Corrs. Esse grande capitalista conservador foi fortemente influencia do pelo advogado corporativista Louis Powell, que em 1971 – ano que estava prestes a ser nomeado para o Supremo Tribunal por Nixon – escrevera um memorando expressando suas preocupações sobre como ativistas pró-consumidores e progressistas estavam a infectar em geral a população com preconceitos contra as corporações.  Fora esse o start do movimento neoconservador que atuaria e influenciaria a sociedade através da imprensa republicana. Outros braços ideológicos dos republicanos direitistas são a American Enterprise Institute e a Cato Institute. Retirado do documentário Orwell rolls in his grave – a film by Robert Kane Pappas.

 

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