Sobre alguns pontos da Declaração de Fortaleza na VI Cúpula dos BRICS – parte 2

18/09/2014 21:22

[parte 1]
Marcos Belmonte

A Declaração de Fortaleza[1] segue apontando as diferenças com que o bloco do BRICS pretende fortalecer o mundo democrático e que se posiciona contra as atuais administrações unilaterais pró OTAN e EUA. É preciso que se reafirme que as determinações das Cartas da ONU são frequentemente distorcidas, quando não, ignoradas, pela meia dúzia de nações – ênfase aguda nos EUA -, para o cumprimento de suas agendas. Isso que são as signatárias das mesmas Cartas! Quando nações pedem pela obediência ao órgão máximo dos estados do planeta, com relação ao que podemos entender como a “carta magna” que guia essa instituição – ou que deveria guiar – são taxados depreciativamente e/ou lhes atribuído menor importância, assim como suas reivindicações, preterindo-as aos assuntos relacionados a sua agenda e/ou de boa parte do Conselho de Segurança. Uma distorção da realidade que se quer democrática para alimentar essa atual máquina sanguinária capitalista de apetite infinito, bem como ranços anacrônicos políticos e/ou ideológicos. Absolutamente fora dos desígnios da Carta.

[os princípios das Nações Unidas são:] 2 - desenvolver relações amistosas entre as nações, baseada no respeito ao princípio de igualdade de direitos e de autodeterminação dos povos, e tomar outras medidas apropriadas ao fortalecimento da paz universal. / 3 – conseguir uma cooperação internacional para resolver os problemas internacionais de caráter econômico, social, cultural ou humanitário, e para promover e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião; e 4 - Ser um centro destinado a harmonizar a ação das nações para a consecução desses objetivos comuns.[2]

O BRICS busca a revitalização dos desígnios da Carta da ONU.

Esses princípios e propósitos seriam de magnífica contribuição para a construção de um mundo democrático se fossem seguidos à risca. Mas há dezenas de caso onde eles são esquecidos pelo status quo da OTAN e do Conselho de Segurança. Quase nenhum estado nação quer que continue o bloqueio econômico imposto a Cuba que já dura décadas e décadas. Os votos contrários ao fim dessa arbitrariedade são dos Estados Unidos e de Israel. A Carta de Fortaleza sugere que as nações com maior poder econômico sejam parceiras das de menor potencial e, forme políticas de desenvolvimento para a diminuição das desigualdades. Cuba, mesmo com esse embargo, desenvolve-se socialmente de maneira superior à boa parte das outras nações. Sua medicina e vista como um sucesso por imensa parcela do planeta, menos por estamentos retrógrados norte-americanos e mídias e corjas cooptadas de outras nações, como uma parcela estúpida brasileira. Cuba tem um sistema social que prima pelo indivíduo e não pelo seu poder de compra. É uma cultura que tem muito a ensinar para as nações desenvolvidas, mas é asfixiada economicamente pela maior potência do planeta e, mesmo assim, resiste bravamente. O BRICS tem ligações com a Ilha de Cuba e reforça esses laços.

A parceria Brasil-Cuba construiu o porto em Mariel, o que possibilitará uma ótima fonte de negociações com diversas nações e simbiótica entre Brasília-Havana[3]. Os BRICS estão cumprindo os desígnios da Carta da ONU ao enfrentar a esquizofrenia norte-americana com Cuba. E mais, essa postura dos EUA com Cuba vai imediatamente contra qualquer fraternidade entre as nações do planeta, e, mais uma vez, o exemplo positivo vem de sua antiga nêmeses, a Rússia. Vladmir Putin perdoou uma dívida em 95% que Cuba tinha com a antiga URSS, e negociou com Raúl Castro o pagamento do restante em 10 anos, para não prejudicar a aplicação dos recursos cubanos em seu próprio país[4]. Isso é um golpe possante no estômago entupido de McDonald’s dos Estados Unidos e uma amostra de como um país deve agir para promoção dos desígnios da Carta. Isso trouxe a fúria do status quo porque representa uma atitude de afronta que não pode ser questionada, pois, sai da esfera subserviente de influência dos EUA. Países da UNASUL também mantém relações fortes com Cuba, enquanto EUA e OTAN ficam isolados quando o assunto é construção de um mundo democrático.O BRICS deu grande suporte político para a Rússia poder agir de maneira distinta das determinações do Conselho de Segurança, enquanto aqueles são coniventes e/ou omissos com os assassinatos pelo mundo. Posição imediatamente contrária ao BRICS[5].

EUA e seus parceiros mostram como desobecedem a Carta da ONU.

Recordamos que desenvolvimento e segurança são estreitamente interligados, se reforçam mutuamente e são centrais para o alcance da paz sustentável. Reiteramos nossa visão de que o estabelecimento da paz sustentável requer enfoque abrangente, concertado e determinado, baseado em confiança recíproca, benefício mútuo, equidade e cooperação, que enfrente as causas profundas dos conflitos, incluindo suas dimensões política, econômica e social. Nesse contexto, salientamos igualmente a estreita inter-relação entre manutenção da paz e consolidação da paz. Destacamos também a importância de integrar perspectivas de gênero na prevenção e resolução de conflitos, na manutenção da paz, na consolidação da paz e em esforços de reabilitação e de reconstrução. / Daremos seguimento aos nossos esforços conjuntos em coordenar posições e em atuar sobre interesses compartilhados pela paz mundial e em questões de segurança, tendo em vista o bem-estar comum da humanidade. Enfatizamos nosso compromisso com a solução sustentável e pacífica de conflitos, conforme os princípios e objetivos da Carta da ONU. Condenamos intervenções militares unilaterais e sanções econômicas em violação ao direito internacional e normas universalmente reconhecidas das relações internacionais. Tendo isso presente, enfatizamos a singular importância da natureza indivisível da segurança e que nenhum Estado deve fortalecer sua segurança em detrimento da segurança dos demais.[6]

São atitudes rigorosamente antagônicas aquelas promovidas pelos BRICS e pela OTAN. Apesar de o primeiro ser frequentemente acusado de desobedecer aos desígnios da Carta dos Direitos Humanos da ONU – mais pesadamente essas acusações caem contra Moscou e Pequim, que vão desde perseguição russa às questões de gênero e Pequim com uma ditadura socialista severa contra a liberdade[7] -, são esses que estão indo contra aos embargos criminosos e/ou assassinatos praticados pelos EUA e seus aliados na América Central, no Oriente Médio etc., mostrando o espírito da Carta de Fortaleza[8].Com que moral a superpotência e aOTAN questionam os BRICS? Não com moral, mas, sim, com objetivos muito claros: Manter sua agenda e seu sistema. O bloco é outra alternativa para a governança mundial e, mais rápido do que pensaram, está a ganhar força pelo mundo, novos parceiros, o que fará terem maior influência na órbita da ONU nas decisões internacionais. Toda a acusação, espionagem, opressão do norte e etc., não é uma luta pelos objetivos da Carta da ONU (sic), é, sim, uma tentativa de sobrevivência. Mas a potencialidade e representatividade dos BRICS estão num grau agudo ao ponto de a hegemonia ter que agir de forma a aventar e/ou atender as exigências de reforma das instituições pelos mesmos, até como forma de manter-se “nas cabeças”.

No plano externo, a postura do grupo é claramente ofensiva e demandante da reforma gradual da ordem e da governança internacional, mas as relações dos interesses estabelecidos tratam de estabelecer limites a esse impulso reformista. Com efeito, com frequência cada vez maior, recorrem a contraofensivas, assinalando que eventuais mudanças venham acompanhadas de contribuições para a sustentação dos próprios regimes internacionais que buscam reformar, o que se afigura, por ora, a bridge too far para os BRICS.[9]

As reformas do FMI, do Conselho de Segurança, enfim, da governança mundial é sempre postergada pelos EUA pelo fato de que esse tenta estruturar remodelações do sistema posto para manter sua hegemonia, mas, as crises de 2003 e 2008 dão mostra do esgotamento pós Bretton Woods e isso possivelmente significa, num primeiro momento, desaceleração, seguido de estagnação e recessão. Tentarão evitar essa hecatombe da hegemonia norte-americana a qualquer preço. Guerras e tratados ultraliberais estão em curso, vide a situação do Arco das Crises, da Ucrânia, África, TAFTA e etc. É uma tentativa de perpetuação de um sistema contra uma nova lógica político-econômica que surge com muita força do sul/leste do planeta e, está nas entrelinhas da Declaração de Fortaleza. Quer uma lupa?  

[Leia também O BRICS como contrapeso a hegemonia do nosrte  e suas possibilidades]

Referências

Itamaraty. Notas a imprensa - cúpulado BRICS declaração de Fortaleza. https://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/vi-cupula-brics-declaracao-de-fortaleza

Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça.  www.institutoriobranco.mre.gov.br

Notas

[1] A Declaração de Fortaleza é o documento de abertura do segundo ciclo de cúpulas dos BRICS e foi apresentada para o mundo pela presidenta Dilma Rousseff em 15 de julho de 2014. Disponível em https://www.itamaraty.gov.br/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/vi-cupula-brics-declaracao-de-fortaleza

[2] Carta das Nações Unidas e Estatuto da Corte Internacional de Justiça. Capítulo I; Propósitos e Princípios; Artigo 1.

[3] A oposição e a grande mídia brasileira colocaram em xeque a iniciativa do país de investir na Ilha de Cuba. A presidência foi acusada de “desperdiçar” os recursos brasileiros – tão necessários à saúde, educação, segurança, fomento do setor industrial e etc. – preterindo essas necessidades domésticas ao fomento da economia cubana, imediatamente vinculada ao comunismo.  Sabemos dos posicionamentos da mídia e da direita no Brasil e seu asco para com tudo que lembra “vermelho”. Tirando essa óbvia e previsível posição contra políticas sociais – nacionais e internacionais – surpreende o veneno rico em mentiras sobre a questão do financiamento da construção do porto. O governo brasileiro usou recursos do BNDES para financiar empresas brasileiras para a construção do empreendimento. Essas acusações vêm no lastro da questão de Pasadena, fato que já foi esclarecido pela presidente e membros da Petrobrás, e, devidamente amplificada em época de eleições à presidência, onde a oposição usa de todo tipo de “atos de raposa” para tentar recuperar seu espaço no palácio do Planalto. Obviamente que o Brasil terá algum tipo de vantagem econômica com essa parceria, mas o que devemos ressaltar é o fato da ação ter um caráter de rompimento com o embargo dos EUA à Cuba, dando, assim,sentido aos desígnios da Carta da ONU e seguindo o espírito da Declaração de Fortaleza, ou seja, crescimento econômico com desenvolvimento e inclusão numa órbita de solidariedade entre nações.

[4] È óbvio que Vladmir Putin, seu governo e, provavelmente seus economistas e sua oposição, enxergavam o capital dessa dívida perdido e, o que o presidente da Rússia fez não fora totalmente altruísta.  Ele queria recuperar algo dessa dívida cubana. Contudo, trata-se muito mais de um ato político internacional para marcar postura, em imediata oposição, ao bloqueio norte-americano, os fundos abutres com a Argentina e as medidas de austeridade dos bancos europeus – Alemanha – com a Grécia etc. O capital econômico que se resgata é irrisório se comparado com o capital político. Putin marca, por assim dizer, muitos pontos na sua postura mundial e internamente em seus país.

[5]Reafirmamos o nosso compromisso de contribuir para uma solução abrangente, justa e duradoura do conflito árabe-israelense, com base no marco jurídico internacional universalmente reconhecido, incluindo resoluções relevantes das Nações Unidas, os Princípios de Madrid e a Iniciativa de Paz Árabe. Acreditamos que a resolução do conflito israelo-palestino é um componente fundamental para a construção de paz duradoura no Oriente Médio. Conclamamos Israel e Palestina a retomar as negociações conducentes a uma solução de dois Estados, com um Estado palestino contíguo e economicamente viável, existindo lado a lado e em paz com Israel, dentro de fronteiras mutuamente acordadas e reconhecidas internacionalmente com base nas linhas de 4 de junho de 1967, com Jerusalém Oriental como sua capital. Opomo-nos à continuada construção e à expansão dos assentamentos nos Territórios Palestinos Ocupados pelo Governo israelense, que violam o direito internacional, solapam gravemente os esforços de paz e ameaçam a viabilidade da solução de dois Estados. Saudamos os recentes esforços pela unidade intra-palestina, inclusive a formação de um governo de unidade nacional e os passos em direção à realização de eleições gerais, elemento-chave para consolidar um Estado palestino democrático e sustentável, e conclamamos as partes a se comprometerem totalmente com as obrigações assumidas pela Palestina. Conclamamos o Conselho de Segurança da ONU a exercer plenamente suas funções nos termos da Carta das Nações Unidas no que diz respeito ao conflito israelo-palestino. Recordamos com satisfação a decisão da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) de proclamar 2014o Ano Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino, saudamos os esforços da UNRWA em prestar assistência e proteção a refugiados palestinos e encorajamos a comunidade internacional a continuar a apoiar as atividades da agência.Ibid. trigésimo oitavo ponto da Carta.

[6] Declaração de Fortaleza. Vigésimo sexto e vigésimo sétimo ponto.

[7] Essas acusações podem ser facilmente combatidas porque partem de veículos midiáticos tendenciosos e subservientes à hegemonia norte-americana. Para se gerar um conhecimento sobre eventos que geraram essas acusações precisam ser colocadas dentro de um contexto para se produzir um conhecimento mais amplo. Não é o objetivo desse artigo. Mas, não devemos aceitar tais apontamentos destituídos de embasamento mais consistente.

[8] Acordamos em continuar a tratar todos os direitos humanos, inclusive o direito ao desenvolvimento, de maneira justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase. Fomentaremos o diálogo e a cooperação com base na igualdade e no respeito mútuo no campo dos direitos humanos, tanto no BRICS quanto em foros multilaterais – incluindo o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, do qual todos os BRICS participam como membros em 2014 –, levando em conta a necessidade de promover, proteger e realizar os direitos humanos de maneira não seletiva, não politizada e construtiva, e sem critérios duplos. Ibid. Vigésimo oitavo ponto da Carta.

[9] BRICS: o novo “lugar” do conceito. Disponível em www.institutoriobranco.mre.gov.br. Acesso em 21/07/2014

 

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