Você tem fome de que?
11/09/2012 19:47Daniel Baptista
“viver é algo raro, a maioria das pessoas apenas existe”
Oscar Wilde
É com muita tristeza que eu escrevo este texto, na verdade ele mais um desabafo do que qualquer outra coisa ou tentativa de análise. Pelos números registrados no contador deste sítio pessoas dos mais diferentes pontos do Brasil visualizam os textos colocados aqui. Agradeço a todos em nome dos meus colegas as pessoas que leem, gostam, desgostam, criticam, elogiam, plagiam e etc. e é para vocês que gostaria de falar sobre uma coisa. Porto Alegre. Não especificamente da cidade e sim dos seus habitantes.
Saibam brasileiros desse Brasil de meu deus de perder de vista no horizonte, que Porto Alegre não é apenas o que vocês veem na TV e na internet, não é apenas o pôr do sol no Guaíba com pessoas fazendo Cooper em sua orla do Gasômetro até o Marinha. Não é só o Parque da Redenção com suas tribos variadas lotando-o aos domingos. Não é apenas o Moinhos de Vento e os seus cafés e restaurantes lotados da Padre Chagas. Não temos apenas um cenário “londrino” nas noites da Independência de quarta a domingo. Porto Alegre tem um lado que ninguém mostra gigantesco e que não passa para o País e esse lado é imenso e silencioso. Porto Alegre é mais “europeia das cidades” brasileiras? Não, caros amigos, não é. Somos tão cafuzos e caboclos quanto o resto do Brasil, temos os nossos problemas estruturais e infraestruturais que nem toda e qualquer grande cidade. O centro da cidade é um lugar “desqualificado” frequentado por uma gente “sem nível” e nós aqui destas bandas ao norte do Uruguai, sempre ouvimos em época de eleição algo entoado pelos candidatos - desde que era um guri - a tal “revitalização do centro”.
E nessa parte insignificante da cidade – culpa das pessoas óbvio, pois a enfeiam - que eu me deparei com algo que me perturbou. Fui almoçar em restaurante popular a R$1,00 o prato de comida. Comida bem feita e boa. Olhei para as pessoas que estavam no local. Muitos trabalhadores regulares é verdade, mas tinham muitos mendigos, catadores, idosos - que trabalharam a vida inteira para ter uma esmola mensal - e excluídos em geral do banquete e festim capitalista. O que me perturbou não eram as pessoas ou o ambiente, comecei a refletir nas discrepâncias que a nossa sociedade, ou melhor, que o nosso modo de produção gera há anos. Aquelas pessoas estavam comendo a R$1,00 e muitas certamente estavam fazendo a sua única refeição do dia, em uma época de pujança e orgulho de possuirmos a sexta maior economia do mundo e possuímos quem sabe, a pior distribuição de renda, somos a Belíndia uma expressão muito usada nos anos oitenta, ou quem sabe somos aquela dúvida que foi lançada ao ar “somos o País mais rico dos pobres ou o mais pobre dos ricos?” Lembrei-me dos restaurantes chiques do bairro Moinhos de Vento. Em média, em um chute bem grosseiro, um medalhão de filé mignon pesando de 100gr a 150gr que vem com um molho qualquer, mais um risotinho de arroz arbório ou alguma massa (penne, talharim, etc.) custa entre R$30,00 e R$50,00 mais o serviço de 10% e um refri para beber, uns R$5,00, mais os dez por cento é claro.
Um filé mignon nos supermercados daqui custa em média R$30,00 a R$35,00 o kilograma, para os restaurantes esse preço sairá por R$20,00 ou R$25,00 comprados diretamente dos fornecedores, um filé mignon tem em média 1,5 kg e os maiores chegam a 1,9kg passando de 2kg em raras vezes. Tira-se tranquilamente de 7 a 8 medalhões de filé de 100 a 150 gr. Moral da história, em UM único medalhão (e isso sem contar massa, molho, etc) pagou-se não apenas o kilograma do filé como também se lucrou e acumulou capital herculeamente. Imaginem esse restaurante hipotético vendendo cem pratos do nosso filé a um preço de cinquenta reais por dia. Podemos pensar assim: mas o dono do restaurante tem contas, funcionários a pagar. OK. Mas lembram-se de Marx e a sua regra de “mais valia”? Em dois pratos desses pagou-se a diária dos cozinheiros e dos garçons, em três o porteiro e o caixa e pro aí vai (para o patrão isso é CUSTO).
Por isso parafraseei o trecho da música do Titãs, você quer matar a fome ou sua fome é de que? Como já disse em outro artigo aqui a burguesia quer exclusividade, quer o exótico e o diferente. Quer o que milhões de pessoas não poderão ter e somente ela pode ter. É muito mais que simplesmente ter fome. É hiper-real. Qual a diferença do rango do bandejão a um real e o servido nos bares e restaurantes do Moinhos de Vento? Muitas coisas que legitimam essa relação... ar, serviços, clima, ambiente, gente diferenciada, afortunadas que mereceram estar lá, não exploraram ninguém para isso. No entanto a função orgânica realizada pelo alimento será a mesma que o prato de carreteiro e feijão do restaurante popular.
Leia também
Fetiches capitalistas: um dos cernes da desigualdade
Lembro-me de um trecho de um livro chamado “Bilhões e Bilhões” do genial Carl Sagan, dizia ele que quando ele era criança imaginava que a ciência produziria todas as benesses que necessitaríamos e que no futuro ninguém seria pobre ou miserável. Realmente isso confirma a sua inocência infantil na época, não considerou as relações capitalistas estabelecidas entre os seres humanos e que elas ditam quem vai ter e quem não vai ter. Malthus errou ao afirmar que a população cresce geometricamente e os alimentos aritmeticamente, ele não contou com a revolução da agricultura e ano após ano, somos capazes de bater recordes de safras que suprem a necessidade proteica do mundo inteiro, mas como disse o mestre Milton Santos “o sistema convencionou que uns podiam comer e outros não...” Essa colossal massa energética chamada de alimentos é transformada em mercadoria, não é a finalidade de ela ser distribuída de forma igualitária e suficiente para todos, assim não teríamos alta gastronomia e seus privilegiados apreciadores, gourmets da cozinha “moderna”, “contemporânea”, deem uma olhada nesses programas de “yuppies” ao estilo Amauri Jr. Esses novos ricos adoram falar desses dois adjetivos sem nem ao menos saber do que se trata, é lamentável.
Sabe gente, uma única ida ao restaurante popular me provocou esse choque e se ninguém se comove com essas diferenças abissais estamos mesmo vivendo em uma sociedade profundamente doente. E uma das coisas que mais machuca é que estamos de mãos amarradas. Eu não sei quanto a vocês aí do outro lado, mas eu nunca passei fome na vida. Mas por horas sim (tipo quando você está em um hospital aguardando atendimento, ou quando não se toma café da manhã e espera até a hora do almoço e por aí vai) e mesmo assim dá para contar nos dedos às vezes que foram. A boca saliva, as glândulas salivares doem, o estomago nos dá a sensação de vazio e que aos poucos parece que ele está sumindo. Passar fome é ruim. Agora imaginem essa sensação por dias, semanas, e com ela você tem que conviver até catar kilos de latas de alumínio, ou esmolar em alguma sinaleira para obter um real para poder fazer uma refeição decente. E essa multidão é silenciosa e ninguém quer ver ou acreditar que ela existe, afinal, todos nós estamos ocupados em matar a nossa fome de status, de point, de felicidade instantânea. E você? Tem fome de que?
Leia mais
SAGAN, Carl. Bilhões e bilhões.
Veja também
Ilha das Flores. Documentário (https://www.youtube.com/watch?v=pEXaeYH2I8A)
Por uma outra globalização – Documentário (https://www.youtube.com/watch?v=K6EIIQNsoJU)
—————